quarta-feira, 5 de junho de 2013

“As melhores coisas são de ar”

Penso no “Brincar” e imediatamente recordo um menino de há muito tempo e sobre o qual em tempos escrevi: o Armelim. Vinha sempre para o Jardim no seu cavalo branco, invisível aos olhos dos outros. Atrelava-o cuidadosamente a uma árvore para que não fugisse, sempre perto da erva onde pudesse pastar. Cruzou o ano todo de capa e coroa e era príncipe a tempo inteiro. Nos dias mais difíceis chorava porque o cavalo estava muito doente e podia não resistir. Foi com o Armelim que aprendi que o Brincar podia ser uma questão de sobrevivência e de resistência moral a uma vida demasiado pesada para quem conta apenas 5 anos.
Penso no Brincar e recordo as palavras do Alberto, um jovem de 23 anos, que me dizia recentemente: ”Tempos inesquecíveis os da Ludoteca, ainda hoje os meus melhores amigos são aqueles com quem lá brincava.” Com ele relembrei como o Brincar e a construção de afectos andam de mãos dadas.
Penso no Brincar e assaltam-me as sábias palavras do artista e curador italiano António Catalano que, na inesquecível exposição “Universos sensíveis” (onde dei por mim fechada dentro de um armário a falar com um espelho), expunha aquela que considero a mais brilhante definição de infância:
Pensamos na Infância não como uma idade mas como um olhar, uma maneira de ver as coisas, de pensar o mundo.
A Infância é surpreender-se com os pirilampos, com o jacarandá, com o botão que abre. A Infância é pentear cometas, mimar microssegundos, amestrar preguiças.
É Infância irritar-se com as coisas, mudar frequentemente de sítio, inventar ideias.
Não nos interessam as respostas, as certezas imutáveis.
Estamos fascinados pelas interrogações. Caminhadores de perguntas.

Como Educadora fascinada por esta capacidade mágica do Brincar e do Jogo simbólico, reconheço o jogo espontâneo ― individual e de grupo ― segundo interesses pessoais da vida das crianças. Mas verifico também como os novos interesses, temáticas em pesquisa e projectos desenvolvidos em contexto escolar ou lúdico podem influenciar e colorir esse Brincar de outros tons. Acredito que o Brincar pode e deve ser enriquecido com a criação de objectos e adereços, e através da adaptação e recriação de espaços e materiais. A descoberta de outras regiões geográficas e de outros povos, a investigação de épocas históricas, as pesquisas científicas, as personagens de livros… nada está a salvo deste acto ― magicamente invasivo ― que é o Brincar.
Pensamos na Infância e não paramos de nos surpreender com uma capacidade inesperada de realizar feitos só aparentemente impossíveis.
As melhores coisas são de ar”… palavras inspiradas de Manuel António Pina. Só um poeta poderia levar-nos a entender a possibilidade de “fazer um castelo no are ir lá para dentro morar…”.
Proponho agora algumas imagens para que se fique “a saber que isto tudo pode acontecer”: Transpor o tempo e as fronteiras geográficas… rumar à montanha mais alta, viajar em aventurosas caravelas, mergulhar com crocodilos, viver num iglu no topo do mundo, defender a Terra de uma chuva de asteroides…

Sabemos que estamos no caminho certo quando, levados pelo entusiasmo, ultrapassamos aquilo que os nossos pequenos parceiros de jogo consideram “normal” para um adulto, e, ligeiramente assustados, nos tocam como que para nos despertar do sonho, dizendo: “Olha… mas isto era só a brincar!...”



Helena Martinho
Educadora do Jardim de Infância do Vimeiro
Artigo publicado nos Cadernos de Educação de Infância,
CEI n.º 98, Janeiro/Abril 2013

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