segunda-feira, 8 de novembro de 2010

O avô Joaquim

O avô era um bonito homem. Alto, esbelto, feições correctas, um bigode ruivo muito cuidado e aquele ar altivo parecendo dominar tudo e todos. Dizia-se que fora grande conquistador de corações nos tempos da juventude. Ainda na época em que o conheci da fama não se livrava, sob a complacência da avó, habituada a sofrer em silêncio as agruras de todas as infidelidades.

Fiquei com ele, na casa onde nasci, nos primeiros anos. Do respeito que lhe tínhamos, mistura de medo e admiração, ainda hoje retenho a impressão que nos causava. Tempo de silêncios quando ele se anunciava, no gesto habitual de abrir a porta ou no subir vagaroso da velha escada. O certo é que nunca o avô se zangou connosco. Nos jantares das quintas-feiras, reunida a família, os pequenos tinham já nessa época o privilégio de contestar pequenas coisas. Nesses momentos, por entre os esgares aflitos dos pais e dos tios, o avô esboçava sempre um sorriso discreto de condescendência e ternura, camufladas embora pelo ar austero que a ele mesmo se impunha.

Guardo em mim, como um marco indelével, aquele seu gesto amável quando terminei a quarta classe. O avô comprou uma pasta de cabedal (o meu sonho de sempre) que colocou num dos degraus a meio da escada que eu subiria mais tarde. Foi a surpresa mais sensacional do tempo que passei com ele. Deixei-o pouco depois, para ir viver com os meus pais.

Dele guardei recordações de infância que fazem parte do meu imaginário. Até hoje.

Texto de Maria da Piedade Pinheiro Martinho publicado no jornal O Mirante (Dezembro.1992)


2 comentários:

  1. Por ser o mais novo dos netos que conviveu com o avô também tenho algumas recordações. Nas noites quentes, após o jantar, era sagrado. Íamos, com um amigo do avô, o tenente Consciência, apagar a luz do mercado. Este tinha quatro ruas, uma de cada portão e, no centro onde se juntavam, tinha, lá bem alto, uma única lâmpada. Iluminava todo o mercado. O avô era o encarregado do mercado e tinha a chave que abria, vagarosamente, o portão, do lado da ex Escola Prática de Cavalaria. Aí, pegava-me ao colo e eu, nos meus quatro anitos, dava um quarto de volta ao interruptor para apagar a luz. No regresso a casa havia sempre uma busca junto à estátua do Marquês Sá da Bandeira a ver se havia algum grilo. Ainda cá guardo a gaiola onde eles passavam uns dias a comer alface e a cantar, quando lhes apetecia.

    JP

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  2. Do avô guardo algumas coisas. Deu-me, num fim de tarde em que estava bastante aflito com uma pneumonia, de que se safou ainda, o seu relógio de ouro. Um relógio de caixa, com uma corrente. Fê-lo na presença de um dos seus maiores amigos. O sr. Augusto dos jornais. Quando recuperou, continuou, obviamente, a usá-lo fazendo, de vez em quando referência de que o relógio era meu. Também tenho os cartões de identidade dele. Um de quando era Fiscal da Rede Eléctrica, de 1929. E outro quando passou para Fiscal dos Mercados e Feiras de 1947. Acho que ele já exercia estas funções antes desta data. A nossa casa, na rua de S. Nicolau, foi das primeiras casas particulares a ter «luz eléctrica». O avô era o fiscal... Tenho o contrato com os Serviços Municipalizados para o fornecimento da luz. Estranhamente não o encontrei quando o procurei recentemente. Deve estar noutro local.

    JP

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