Li algures uma frase com o seguinte significado: o conhecimento é o que fica depois de se esquecer tudo. Numa primeira leitura, poderia ser-se levado a pensar que, esquecendo tudo, nenhum conhecimento ficaria... Visivelmente, porém, não é esta a conclusão a tirar. Na verdade, da vivência pessoal de cada um, não se esquece aquilo a que alguma vez se aderiu completamente, ou seja, aquilo que se interiorizou em nós a ponto de passar a fazer parte integrante do nosso conhecimento.
Admitamos que se pergunta a alguém: Ainda sabe andar de bicicleta? ou O açúcar tem um sabor ácido, amargo ou doce? ou ainda Normalmente, em que época do ano faz mais frio em Portugal? Ninguém duvida que as respostas a tais perguntas serão dadas correctamente e sem hesitação. Suponhamos agora que se interroga um jovem estudante do ensino secundário, por exemplo, sobre questões relacionadas com matérias já versadas nas aulas. Nesta situação, como é óbvio, não se pode afirmar antecipadamente se as respostas serão correctas ou erradas. Isso dependerá da conjugação de vários factores intervenientes no processo de aprendizagem das matérias, de que se salientam aqui a capacidade dos professores e os meios laboratoriais e audiovisuais postos ao serviço do ensino.
Vem isto a propósito da minha passagem pelo Colégio Padre Fernando Eduardo Pereira – Outubro de 1949 a Julho de 1951 – e do conhecimento que me ficou desses dois anos lectivos, depois de esquecer tudo... De todas as disciplinas poderia recordar episódios ou aspectos que influenciaram positivamente a minha actividade escolar subsequente. Citarei apenas um caso. Talvez levemente desfocado, porque esbatido pelo tempo. Mas autêntico.
Aulas de Ciências Naturais em manhã de sol. Foi até necessário fechar a janela para realizar a demonstração, que a claridade era excessiva na sala. Da vitrina de um móvel, onde era guardado o pouco material didáctico que havia no colégio, saiu um aparelho que de há muito despertava a nossa curiosidade. Preparado o equipamento em cima da secretária da professora, a D. Carlota Serra, todos nos colocámos à sua volta, atentos. A Terra era um pequeno globo, a Lua era uma esfera de cortiça espetada na extremidade de um arame encurvado, o Sol era uma vela reflectindo-se num espelho tosco. Accionadas por meio de uma manivela, as engrenagens, um tanto enferrujadas, entraram em funcionamento. A Terra começou a rodar em torno do seu eixo, a Lua iniciou o movimento de translação à volta da Terra, enquanto o Sol, bruxuleante, desempenhava a contento a missão. Eu e os meus colegas agitávamo-nos, interessados. Vieram as perguntas e as explicações, repetiu-se a demonstração. Como diria Sebastião da Gama: aconteceu uma aula! E, em meia hora, fiquei a compreender completa e definitivamente como se sucedem os dias e as noites, como se explicam as fases da Lua, como se dão os eclipses da Lua e do Sol. Dera o primeiro passo no conhecimento dos mistérios da “máquina universal”.
Foi desde então, creio, que passei a olhar a Natureza com tranquilidade.
Artigo publicado na revista Chamusca Ilustrada em Maio de 1977
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