quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Sim, Senhor Doutor! Sim, Senhor Engenheiro!

Há dias tive a oportunidade de ver um certificado de passagem de ano lectivo de uma aluna que frequenta uma Universidade belga, concretamente a Universidade Livre de Bruxelas (ULB). Refira-se desde já que, contrariamente ao que se passa na Universidade portuguesa, a aluna não tinha tido necessidade de requerer o certificado, e os respectivos serviços administrativos não haviam levado tempos infindos a passá-lo. De facto, quando acaba o ano lectivo, e com as classificações lançadas em computador, os professores da ULB reúnem-se em sessão pública e, logo ali, distribuem o certificado pelos alunos que concluíram com êxito os seus exames.

Na posse desse documento, os alunos podem então inscrever-se no ano lectivo seguinte, candidatar-se a um quarto numa residência universitária, solicitar uma bolsa de estudo nos serviços sociais da Universidade, etc. Como se percebe, o sistema está concebido para funcionar com operacionalidade e sem burocracias exageradas, e funciona mesmo.

Vários aspectos impressionam nesse certificado, desde a sua simplicidade formal até ao volume de informação nele contido (que inclui a carga horária anual de cada disciplina e o nome dos respectivos professores), passando pela já referida eficácia com que o documento foi produzido, logo no final do ano lectivo, por recurso a uma tecnologia moderna de processamentos dos dados escolares.

No tocante à simplicidade formal, um aspecto saliente, a reter aqui, tem a ver com a forma como o nome dos professores é escrito no certificado: Mr. Salmon, Mr. Louis, Mr. David, etc. Ora, Mr. é a abreviatura de Monsieur, que quer dizer Senhor, cuja abreviatura é Sr.. Por outras palavras, professores conhecidos internacionalmente, pertencentes a uma Universidade prestigiada, são mencionados muito simplesmente como Sr. Salmon, Sr. Louis, Sr. David, ... Aliás, esta é a regra geral de tratamento das pessoas entre si na Europa, independentemente dos seus graus universitários: o Senhor X, o Senhor Y, ... É simples e prático, e ninguém se sente ofendido ou menos importante.

E que se passa em Portugal? No nosso País, terra de muitos convencimentos e equívocos, onde o reconhecimento de valores nem sempre obedece a critérios de rigor, há muitos e variados tipos de tratamento: Senhor Doutor, Senhor Engenheiro, Senhor Professor... sem falar nas variações utilizadas na forma escrita: Senhor Professor Doutor, Senhor Doutor Engenheiro, Senhor Professor Doutor Engenheiro...

Poderia pensar-se que, com o evoluir do nosso sistema político para uma democracia de tipo europeu ocidental, pudesse haver alguma iniciativa consistente para tentar modificar a situação no tocante à forma de tratamento entre os portugueses, retirando-lhe o convencionalismo reinante e a carga de subserviência que lhe pode estar (e está, muitas vezes) associada. Esta democratização do relacionamento entre os cidadãos poderia (deveria) ser encetada calmamente (que o hábito vem de longe e está enraizado) e sem demagogias, como um projecto a prazo, sem prejuízo do reconhecimento de que as pessoas são diferentes entre si, como distintas são as funções que desempenham na sociedade. No fundo, o respeito saudável por alguém é uma atitude natural, decorre daquilo que a pessoa realmente é e não dos títulos académicos, ou outros, que possa ostentar.

Poderia pensar-se que sim (com o evoluir do sistema político, dizia), mas não, nunca foram dados passos nesse sentido. Sê-lo-ão algum dia? É que mesmo pessoas esclarecidas e tidas como progressistas continuam agarradas a velhos hábitos e “privilégios”, que cavam a diferença e acentuam as distâncias, e defendem-nos ciosamente, forçando a hierarquização dos portugueses em cidadãos de primeira e cidadãos de segunda (onde se incluem cerca de dois milhões de analfabetos!), como se não fosse já suficiente a diferença real existente na prática.

É o caso do professor universitário que humilha um empregado da Faculdade apenas porque o tratou por “Senhor Doutor”: Senhor Doutor? Senhor Professor, quer dizer! Olhe que se for preciso puxar pelos galões, posso muito bem fazê-lo! É o caso do médico que invectiva a funcionária dos correios apenas por lhe ter enviado um aviso dos CTT sem o Dr. atrás do nome. E muitos outros exemplos poderiam ser mencionados.

Nesta matéria, como em muitas outras, Portugal está longe da Europa. E se é verdade que para conseguir certas evoluções são necessários fundos avultados, neste caso a mudança depende apenas de nós, assim haja coragem para encetar um caminho de igualização da dignidade. Agora que foi criado pelo Conselho de Ministros uma estrutura designada “Secretariado Europa 1992”, que «visa, no essencial, mobilizar o País para o desafio decisivo que é a construção da Europa sem fronteiras até 1992», talvez fosse uma boa oportunidade para eliminar certas fronteiras entre os portugueses!


Crónica publicada no jornal O Mirante em Setembro de 1988, e de novo em Junho de 2007 com a seguinte anotação da Direcção do jornal: Quase 20 anos depois resolvemos republicá-la, com a autorização do autor, para percebermos melhor o país em que ainda vivemos.

Fotografia da ULB encontrada em http://commons.wikimedia.org/wiki/User:Roby

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