domingo, 21 de novembro de 2010

Chama-se Ana

Sentou-se ao meu lado num banco desconfortável de uma das salas de espera do Hospital de Santa Maria. Era uma moça esguia, de tez escura, onde só os olhos negros e muito expressivos emprestavam ao conjunto um certo encanto.

A conversa surgiu: falou-me na dura experiência de dois meses de internamento, vividos ali, numa enfermaria sem condições, após uma melindrosa operação. Mas acrescentava, pressurosa, que quanto a cuidados médicos, tudo correra muito bem. Hoje viera para uns exames. Estava liberta. Finalmente!

Natural de Angola, casada e com um filho, o Miguel. Do marido, só más recordações. Largara-se dele há tempo e recolhera-se no afecto de uns tios que muito lhe queriam. Deambulara por França, trabalhando como empregada de um casal. Adoecera entretanto e, com o diagnóstico dos médicos franceses, regressara a Portugal para ser hospitalizada.

Voltou a falar do homem com o qual viveu seis penosos anos, tentando o impossível para manter a chama. Mas tudo fora inútil. Se soubesse até onde chegou o meu desespero! Pensei suicidar-me... Continua casada e espera ganhar forças para iniciar o processo de divórcio. É que está sem emprego e sem dinheiro. Os tios sustentam-na, e ao menino, enquanto o marido vive bem e alheado de todos os problemas.

Decorrera uma hora. Eu aguardava notícias do meu doente. Alguém veio chamá-la. Levantou-se e despediu-se com gentileza. Vi-a desaparecer através da larga porta de vidro, que dá acesso ao elevador.

Chama-se Ana e como adorno tem aqueles olhos grandes, muito escuros.


Crónica de Maria da Piedade Pinheiro Martinho publicada no jornal O Mirante em Setembro de 1989

Ilustração: Mulher de Angola - Quadro de Toia Neuparth

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