segunda-feira, 8 de novembro de 2010

A avó Rosa

A imagem da avó, se bem que esbatida, continua presente. Revejo-a no modo terno como me acarinhava e lembro-a no seu jeito pesado de se deslocar pela casa, roupas escuras que sempre lhe conheci e os hábitos familiares e rotineiros que cumpria com rigor e sem queixumes. Está junto ao fogão de lenha, desfaz pacientemente o feijão que servirá para a sopa. Num passador, ela deita o feijão cozido e, com pancadas ritmadas, tenta desfazê-lo com uma colher de pau, sem pressas. Olho-a extasiada! Nem sequer posso ajudá-la, que a colher é muito grande e é preciso bater com força. Lembro-a sentada a engomar, o ferro pesado, a carvão (sentada, porque o corpo doente lho não permitia de outro modo). E nas épocas festivas, confeccionando as broas e os coscorões – tudo colocado na mesa comprida e escura da sala.

Às quintas-feiras, pontualmente , chegavam para o jantar os filhos já casados, as noras, os genros e os pequenos. Quantas brincadeiras à volta dos pontapés que dávamos uns aos outros, por debaixo da toalha. E os nossos pais, que nos lançavam olhares reprovadores! O avô mantinha, lá no topo, uma presença austera, mas era quinta-feira... Nós sabíamos bem que isso nos era permitido e mesmo recusar a sopa, se por acaso nos agradava menos. O sorriso do avô, só para nós e às quintas-feiras. Grande festa!

Vem-me à memória os anos 43 ou 44, com o racionamento de alguns géneros alimentícios. Se bem que nos não tenha afectado, porque o avô fiscalizava o mercado municipal e vinham todos os dias as alcofas repletas de tudo muito fresco, apenas eu o sentia no rebuçado ou na colher de mel que a avó colocava no fundo da minha caneca para adoçar o leite com café. É que o leite continuava bem amargo e eu reclamava sempre. Nos tempos livres a avó tricotava, em fio de algodão, lindas meias rendadas para os netos. Usava cinco agulhas muito finas de metal, cujo tilintar e arte no manejo me causava sempre grande surpresa. Nos momentos menos bons ou nos dias de temporal, ela recolhia ao quarto e rezava diante do grande oratório, suspenso numa das paredes e no qual se misturavam imagens de santos de aspecto mais ou menos triste, flores secas e pavios que, alimentados a azeite, emprestavam ao ambiente um cheiro não muito agradável. No conjunto, e para mim, era um local misterioso e sinistro. Detestei sempre o velho oratório!

A avó acompanhou entusiasmada a minha entrada na escola primária. Esmerava-se nas minhas batas, sempre lindas, e destinara em casa, num cantinho, uma secretária para os meus afazeres, que os tínhamos nessa altura e em quantidade, todos os dias.

Cresci com ela até aos nove anos. De repente, a avó ficou muito doente. Ninguém me preveniu, mas eu sabia que ela ia deixar-nos. Sentava-me junto dela o tempo todo. Quiseram afastar-me. Recusei. Levaram-na numa tarde de sol. Seguiram-se noites de pesadelos e mágoa. Com muita dificuldade, retomei naquela casa o meu lugar, agora sem ela.

Texto de Maria da Piedade Pinheiro Martinho (1992)

1 comentário:

  1. Já conhecia este emocionante texto. A tia Julieta deu-me uma cópia.

    JP

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