A realidade que o cidadão comum vive mais intensamente, para além dos seus problemas do dia-a-dia, é a realidade que certos órgãos de comunicação social constroem, em especial a televisão. Não, não se trata de analisar o Big Brother ou outros programas deste tipo. Trata-se de discorrer sobre outras realidades.
Num dado momento, e por uma razão ignota, é lançada uma notícia ou sugerida uma pseudo-notícia, e aí vamos nós todos a correr atrás da lebre. Vamos nós e, não poucas vezes, vão também os políticos. Depende do que está em jogo. A certa altura, andamos todos atarantados atrás do esquivo animal, procurando seguir o ziguezague da fuga. Há os que ficam aflitos, outros aproveitam para dar uns encontrões, alguns destemperam-se na linguagem, e a confusão instala-se. Exibem-se argumentos, admitem-se hipóteses, pedem-se medidas, dão-se desculpas. Em geral, desconhece-se a matéria, mas todos opinam. Alguns põem-se em bicos de pés, exibem-se coitadinhos, inventam-se peritos, constatam-se incompetências.
Quando o assunto perde viço, remoem-se argumentos, reformulam-se hipóteses, fazem-se recapitulações. Mas como tais realidades são como as bexigas – dão com força, mas passam depressa –, volvido o tempo necessário, os lançadores de lebres, saciada a cupidez, olham para os destroços sem interesse. Então, respira-se fundo, é a pausa merecida, o descanso retemperador. Até que nova lebre seja posta em movimento, para reanimar os nossos instintos caçadores. E, mais uma vez, aí vamos nós, esbaforidos, não se sabe bem para onde, nem porquê.
Uma das realidades mais vividas nos últimos tempos foi o urânio. E houve urânio para todos os gostos. Urânio empobrecido, para a maior parte. Urânio enfraquecido, para um conhecido historiador. Urânio reduzido, para um esforçado ecologista. Cada um teve direito ao seu quinhão. Para os que não se contentam com pouco, houve suspeitas de urânio enriquecido, vestígios de urânio-236, receios de urânio com plutónio. Nos corredores do poder, há quem faça ironia com o urânio “enraivecido”. Enfim, um cacharolete do tipo "urânio com todos".
Houve também um “perito nuclear” a quem um locutor da Antena-1 suplicou em vão que informasse os ouvintes sobre o que era o urânio empobrecido. O mesmo “perito” disse a um jornalista da RTP-1 que o plutónio-239 era um produto da cisão do urânio-235! Em português compreensível, isto assemelha-se a cortarmos um pão de 100 gramas ao meio e conseguirmos que cada uma das metades tenha mais de 100 gramas… Como se vê, um autêntico milagre de multiplicação da massa. Mas houve mais. Num prestigiado semanário da nossa praça, foi afirmado que o metabolismo humano transforma o urânio em chumbo! Em português simples, é assim como ingerir um medicamento à base de cálcio e o nosso organismo transformar o cálcio em enxofre (ou arsénio, sabe-se lá)… [Recentemente, na Antena-1, um ex-secretário de Estado (que participava num debate sobre o caso de Fukushima) afirmou enfaticamente ter “visto” plutónio com um Geiger quando foi a Chernobyl integrado numa missão do Parlamento Europeu... ou seja, “viu” uma coisa que é impossível ver!...]
Nesta “guerra” do urânio [e do nuclear], matéria de muitos melindres, seria de esperar um debate mais sério; seria de exigir uma atitude mais coerente e responsável por parte dos intervenientes; seria de repudiar o seu aproveitamento para outros fins que não o da procura da verdade e o do esclarecimento honesto do cidadão comum.
Adaptação de um texto publicado no jornal O MIRANTE em 08.Fevereiro.2001 (aquando da polémica havida em Portugal na segunda metade de 2000 sobre a utilização de munições contendo urânio empobrecido). Cf. por exemplo AQUI
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