quinta-feira, 24 de março de 2011

FUKUSHIMA, por Peter Heller

Dr. Peter Heller é astrónomo e físico. Nasceu em 1966 em Velbert, Alemanha.



O artigo que se segue foi escrito uma semana após o acidente de Fukushima.



  • Não há nenhum outro lugar na Terra onde me agradasse mais estar neste momento do que em Fukushima – exactamente na central nuclear, no centro do acontecimento. Digo isto porque sou físico, e não há outro lugar que possa ser mais emocionante e interessante para um físico. O mesmo se pode dizer de muitos, se não da maioria dos físicos e engenheiros, no planeta.

  • Ainda de tenra idade, sabia que um dia iria estudar Física. Quando menino, recebi um telescópio pelo Natal, e a partir dessa altura o meu olhar fixava-se no céu noturno; observar longamente enxames de estrelas, nebulosas e galáxias era a minha ocupação favorita. Foi só depois que soube que essas luzes cintilantes eram realmente manifestações de uma caótica e violenta força da natureza – a conversão directa da matéria em energia no decurso da fusão de núcleos atómicos.

  • A curiosidade transportou-me, como se estivesse nas alturas, ao longo de 10 semestres de estudo e subsequente graduação. Foi um tempo de descoberta que envolveu a esforçada tarefa da compreensão. Por vezes senti desespero e dúvida pessoal em relação à amplidão e complexidade do que havia para aprender. No entanto, havia momentos de alegria sempre que o nevoeiro se desfazia e a clareza e a beleza das descrições físicas dos fenómenos naturais apareciam em seu lugar. Foi um tempo que, infelizmente, passou muito rapidamente e que agora se situa num passado que ficou para trás há muitos anos.

  • Os grandes espíritos que me acompanharam ao longo dos meus estudos foram Planck, Sommerfeld, Bohr, Einstein, Heisenberg, e uma série de outros que, para nós físicos, ainda estão bem vivos hoje. Eles foram os grandes pensadores que contribuíram para desvendar os enigmas da natureza e as forças que mantêm o mundo como é assente em ínfimas estruturas, na sua maior parte. Eu devorava as histórias de Otto Hahn e Lise Meitner, de Enrico Fermi e Edward Teller – para citar alguns – e como eles abriram caminho a tecnologias completamente novas a partir de conceitos teóricos, mostrando como a energia armazenada no núcleo de um átomo poderia ser utilizada para o bem do Homem e como se tornava possível por um caminho nunca antes percorrido explorar em grande escala uma fonte de energia barata, limpa e abundante como nunca se vira antes: energia eléctrica que ilumina o nosso mundo, faz mover máquinas, permite-nos comunicar a grandes distâncias, tornando a nossa vida mais fácil e confortável. É uma fonte de energia que faz sair da pobreza e permite a prosperidade.

  • Electricidade: produzida pela divisão de núcleos atómicos com neutrões, adquirida através da conversão directa de massa em energia. É o princípio segundo o qual (através do processo inverso da fusão nuclear) as estrelas cintilam no céu noturno, um princípio pelo qual o Sol permite a vida no nosso planeta.

  • Como físico, enche-me de alegria e orgulho ver como o Homem é capaz de despertar esta força da natureza ao nível estrutural mais ínfimo, e depois ampliar, controlar e utilizar essa força em nosso benefício. Como físico, eu tenho o entendimento fundamental dos processos, posso imaginá-los e descrevê-los. Como físico, não tenho medo de uma central nuclear, nem da radioactividade. Finalmente, eu sei que a radioactividade é um fenómeno natural que está permanentemente connosco, à nossa volta, a que nunca poderemos escapar – e de que não precisamos de fugir. E vejo numa central nuclear um símbolo da capacidade do Homem para domar as forças da natureza. Como físico, não tenho medo do que a natureza tem para oferecer. Mais propriamente: tenho respeito. E este respeito convoca-nos a aproveitar os acasos favoráveis como os oferecidas pelos neutrões, que podem dividir núcleos atómicos e, assim, converter a matéria em energia. Qualquer outra coisa seria ignorância e cobardia da nossa parte.

  • Houve momentos na história em que a ignorância e a cobardia ofuscaram a vida humana. Foi uma época em que antepassados nossos eram obrigados a uma vida de superstição e medo, porque estavam impedidos de usar a criatividade e a fantasia. Dogmas religiosos, como o ser a Terra o centro do universo, ou a pseudo-teoria do criacionismo, levaram as pessoas a não questionarem a realidade da natureza. A proibição de autopsiar um corpo humano e de o examinar, impedia as pessoas de apresentar dúvidas. Hoje, tais concepções medievais aparecem como retrógradas e sem sentido. Nós, simplesmente não podemos imaginar que um tal modo de pensar tenha qualquer aceitação.

  • Mas nos últimos dias tenho sentido a preocupação crescente de estarmos novamente a caminho desses tempos sombrios. Reportagens histéricas e sensacionalistas dos media, a par de uma clara exibição de ignorância das inter-relações técnicas e científicas, assim como a tentativa de uma vasta maioria de jornalistas de provocar nas pessoas o medo e a oposição à energia nuclear – pura caça às bruxas disfarçada de modernidade.

  • Por isso, enche-me de tristeza e raiva ver como o trabalho dos referidos gigantes da Física está agora a ser arrastado pela lama, como as grandes descobertas científicas do século XX estão a ser redefinidas e criminalizadas. O debate actual na Alemanha é também um debate sobre a liberdade de investigação. A estigmatização e o ostracismo da energia nuclear, o pedido de uma paragem imediata da sua utilização, é também um pedido visando o fim da investigação e do desenvolvimento. Não haver oportunidades de emprego significa também não haver alunos, o que equivale a não haver faculdades, o que significa, em última análise, o fim do progresso do conhecimento humano. Banir a energia nuclear é, nada mais, nada menos, do que rejeitar o legado de Einstein, Heisenberg, Bohr e muitos outros. Equivale a fazê-lo em estilhaços, rotulando-a de perigosa – tudo num quadro de ignorância. E tal como os criacionistas tentaram banir a Teoria da Evolução dos livros escolares, quase parece que cada explicação factual e isenta na Alemanha está agora em vias de ser proscrita.

  • Os media sugerem uma catástrofe nuclear, uma mega-fusão, e que o apocalipse já começou. É quase como se as 10 000 mortes no Japão tivessem realmente sido consequência da energia nuclear, e não do terramoto ou do maremoto. Também aqui é preciso lembrar que Fukushima foi atingida por um inimaginável terramoto de nível 9 e, em seguida, apenas uma hora depois, por um “muro de água” com 10 metros de altura. Em consequência, FUKUSHIMA não se erguia já num país de alta tecnologia, mas sim num deserto de escombros. Tudo ao redor da central, infra-estruturas, áreas residenciais, vias de circulação, redes de energia e de comunicação, simplesmente já não existiam. Tudo foi destruído. Apesar disso, após uma semana, o apocalipse ainda não aconteceu. Somente foram libertadas quantidades relativamente pequenas de materiais radioativos, que tiveram apenas impacto local.

  • Se nos cingirmos aos factos, ou seja, àquilo que realmente é conhecido, torna-se evidente a falta de fundamento das interpretações de analfabetos científicos nos media. Só podemos chegar a uma conclusão: este triste estado de coisas vai se manter.

  • Na verdade, Fukushima não é a demonstração do fundamento de receios e advertências ideologicamente motivados. Fukushima mostra antes que somos realmente capazes de controlar a energia atómica. Fukushima mostra que podemos dominá-la mesmo quando catástrofes naturais além do previsível caem sobre nós. Ainda assim, em torno de Fukushima avulta o conflito entre criatividade e competência humanas e o aproveitamento da energia de ligação nos núcleos atómicos. É uma luta que mostra o que a inteligência humana, conhecimento adquirido, paixão, ousadia, respeito e capacidade de aprender nos permitem fazer. Pessoalmente isso não me enche de apreensão, mas de esperança. O Homem pode responder a este desafio, não só porque tem de o fazer, mas acima de tudo, porque quer fazê-lo.

  • Apesar de não trabalhar em Física há algum tempo, nunca deixarei de ser um cientista e um investigador, e não há outro lugar onde eu preferisse estar agora mais do que em Fukushima. Não há outro lugar neste momento onde se possa aprender tanto sobre a energia atómica, que no fundo mantém o nosso mundo tal como é, e sobre as possibilidades técnicas de se beneficiar dela. Não temos a coragem de aprender? Não aceitamos – com respeito e confiança – as oportunidades com que somos confrontados? Fukushima vai mostrar-nos possibilidades de usar a conversão directa da matéria em energia de uma forma melhor e mais segura, algo com que só Einstein e outros poderiam ter sonhado.

  • Eu sou físico. O meu desejo é viver num mundo com vontade de aprender e de melhorar tudo o que é bom. Eu só gosto de viver num mundo onde os grandes avanços da Física sejam vistos com fascínio, orgulho e esperança, porque nos mostram o caminho para um futuro melhor. Eu só gosto de viver num mundo que tenha a coragem de aspirar a ser um mundo melhor. Qualquer outro mundo para mim é inaceitável. Jamais. É por isso que vou lutar por esse mundo, sem nunca ceder.




Texto original, em Alemão: http://www.science-skeptical.de/blog/fukushima/004149/


Versão em Inglês: http://wattsupwiththat.com/2011/03/20/a-plea-for-a-return-to-science-on-the-nuclear-power-issue/


NOTA - A presente versão em Português beneficiou muito da gentil colaboração do meu colega e amigo Frederico Carvalho que, além de prestigiado Físico, é fluente em Alemão e em Inglês.


Foto de M. Planck: http://www.praticandofisica.com.br/ ; Foto de L. Meitner: http://www.mediathek.at/ ; Fotos dos restantes cientistas: http://en.wikipedia.org/

3 comentários:

  1. A imbecilidade e o acanhamento do 'nuclear não obrigado' fica mais uma vez provada.
    Eduardo Martinho e Frederico de Carvalho divulguem quanto poderem.
    João Mineiro

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  2. Obrigado pelo comentário.
    João Mineiro... o nome sugere-me um ex-colega de Sacavém :).
    Acertei ou estou equivocado?
    De qualquer modo, um abraço.

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  3. Isto tudo no dia dos enganos não está nada mal...

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