sábado, 5 de março de 2011

A bicha nacional

1. Embora o dicionário de Rodrigo Fontinha tenha lá escarrapachado que uma bicha -- no sentido de fila, entenda-se! -- é «um grupo de pessoas em fileira, uma a uma ou duas a duas, etc.», é mentira. A bicha lusitana não responde a este apelo. Nas bichas da nossa terra, as pessoas nunca se colocam «uma a uma» ou «duas a duas», colocam-se sempre em «etc.». Por natureza, a bicha nacional é um magote, tudo ao molho e fé em Deus.

Ainda consultei o Moderno Dicionário da Língua Portuguesa -- por ser moderno, precisamente --, mas a definição também não está actualizada. Diz lá que bicha é um «grupo de pessoas dispostas em linha recta, lado a lado ou atrás umas das outras», mas não é. As pessoas, quando se dispõem em linha, nunca é em linha recta, é numa linha muitíssimo abstrusa. Talvez porque está por inventar a geometria do civismo em Portugal.

As pessoas nunca se põem atrás umas das outras, põem-se em cima umas das outras. Em vez de se colocar na bicha à espera da sua vez, cada um coloca-se na bicha à espera da vez dos outros. O pessoal põe-se onde calha ou onde acha que melhor pode iludir os seus competidores.

2. Quando o padeiro pergunta «Quem é que está a seguir?», há pelo menos dez bocas que se abrem, esfomeadas de vez, prontas para comer o vizinho que se atrever a responder primeiro. O homem, à cautela, ainda diz «Tenham calma, que há pão para toda a gente», mas ninguém se comove. Cheira a complicação na padaria do bairro.

Havendo peixeira na bicha, isso então é o fim do mundo: o caldo entorna-se em dois tempos, jorra molho de escabeche por tudo quanto é rival de ocasião. Ninguém escapa, na procura de um bode expiatório para o mal-estar que se instala. «A culpa disto tudo é do Governo!», ouve-se. O silêncio que se segue é de assentimento.

A confusão só acalma quando alguém mais bem composto, com o ar de quem está habituado a ser obedecido, diz serenamente: «Quem está primeiro é a senhora do casaco encarnado.» Num só movimento, todos os olhares convergem na dita cuja. Há uma breve hesitação. E, antes que alguém tenha tempo de pôr em dúvida o que quer que seja, uma voz fininha aproveita a pausa: «Quero um pão grande e doze papo-secos

O padeiro retoma o vaivém rotineiro, atendendo o pedido da senhora do casaco encarnado. A crise, essa, segue dentro de instantes. O melhor é dar uma volta e regressar mais tarde.

3. Quem diz padeiro, diz mercado, talho ou mercearia. Diz café de esquina à hora do almoço em pé ou bicha de autocarro em hora de ponta. Onde quer que seja necessário o pessoal ordenar-se, é certo e sabido que se estabelece o caos, a entropia aumenta. Só há civilidade na bicha quando não há ninguém à frente de ninguém. A bicha nacional é a imagem da falta de organização do País.

Acresce que a lusa gente gosta muito de bichas. Onde houver um amontoado informe de pessoas, está lá uma bicha portuguesa, com certeza. Nem que seja para verem melhor o acidente. Para poderem contá-lo em pormenor, enquanto se queixam das bichas.


Texto publicado em Alma Nova – Suplemento Cultural de O MIRANTE, 12.Março.1997

Ilustrações (pela ordem apresentada) in
http://afilanossadecadadia.files.wordpress.com/
http://imaginacaoativa.wordpress.com/
http://www.onoticiasdatrofa.pt/

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