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Ainda consultei o Moderno Dicionário da Língua Portuguesa -- por ser moderno, precisamente --, mas a definição também não está actualizada. Diz lá que bicha é um «grupo de pessoas dispostas em linha recta, lado a lado ou atrás umas das outras», mas não é. As pessoas, quando se dispõem em linha, nunca é em linha recta, é numa linha muitíssimo abstrusa. Talvez porque está por inventar a geometria do civismo em Portugal.
As pessoas nunca se põem atrás umas das outras, põem-se em cima umas das outras. Em vez de se colocar na bicha à espera da sua vez, cada um coloca-se na bicha à espera da vez dos outros. O pessoal põe-se onde calha ou onde acha que melhor pode iludir os seus competidores.
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Havendo peixeira na bicha, isso então é o fim do mundo: o caldo entorna-se em dois tempos, jorra molho de escabeche por tudo quanto é rival de ocasião. Ninguém escapa, na procura de um bode expiatório para o mal-estar que se instala. «A culpa disto tudo é do Governo!», ouve-se. O silêncio que se segue é de assentimento.
A confusão só acalma quando alguém mais bem composto, com o ar de quem está habituado a ser obedecido, diz serenamente: «Quem está primeiro é a senhora do casaco encarnado.» Num só movimento, todos os olhares convergem na dita cuja. Há uma breve hesitação. E, antes que alguém tenha tempo de pôr em dúvida o que quer que seja, uma voz fininha aproveita a pausa: «Quero um pão grande e doze papo-secos.»
O padeiro retoma o vaivém rotineiro, atendendo o pedido da senhora do casaco encarnado. A crise, essa, segue dentro de instantes. O melhor é dar uma volta e regressar mais tarde.
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Acresce que a lusa gente gosta muito de bichas. Onde houver um amontoado informe de pessoas, está lá uma bicha portuguesa, com certeza. Nem que seja para verem melhor o acidente. Para poderem contá-lo em pormenor, enquanto se queixam das bichas.
Texto publicado em Alma Nova – Suplemento Cultural de O MIRANTE, 12.Março.1997
Ilustrações (pela ordem apresentada) in
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