quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Vamos levar a Ciência ao Jardim de Infância?

Há algum tempo, tive a oportunidade de visitar o Jardim-de-Infância de Famalicão (Nazaré) a con­vite da educadora Helena Martinho. Antes de prosseguir, devo dizer que foi reconfortante ver um espaço animado como aquele, cheio de imaginação e disponibilidade, onde se torna evidente que as crianças são felizes e vão “crescendo” enquanto brincam.

Em dado momento, vi-me rodeado de crianças, todas querendo que lhes arranjasse um instrumento de sopro como o que tinha feito para uma delas. Que acontecera?
Quando chegámos ao espaço ao ar livre adjacente ao Jardim, também ele preparado para desafios amigáveis de superação – as crianças até podiam atravessar rios com crocodilos coloridos, de olhos arregalados, com a ajuda de uma corda pendurada, como se fossem Tarzans... –, apercebi-me de que havia um canavial ali perto e, por associação de ideias, lembrei-me dos meus tempos de miúdo. Nessa altura, como os brinquedos escasseavam, brincava-se com o que havia à mão: faziam-se barcos com casca de pinheiro, juntas de bois com folhas de piteira, armas de arremesso com pequenos troncos ocos de sabugueiro e arranjavam-se instrumentos sonoros com materiais diversos a que tínhamos acesso no campo.
Uma das maneiras mais simples de produzir um som divertido consiste em soprar numa das folhas mais novas de uma cana verde, isto é, as folhas ainda enroladas que se situam na extremidade da cana e que se extraem facilmente puxando-as no sentido do crescimento. Foi deste tipo de brincadeira que me lembrei quando vi o canavial. Chamei uma das crianças e perguntei-lhe se queria um apito. A pers­pectiva entusiasmou-a, o empreendimento teve sucesso e a notícia espalhou-se. Foi assim que me vi rodeado de crianças. Escusado será dizer que as folhas novas do canavial é que sofreram com o êxito da iniciativa.

O sucedido teve ainda um elemento enriquecedor complementar. Quando se sopra numa folha de cana, sente-se nos dedos a vibração do instrumento. Chamando a atenção das crianças para esse facto, como fiz com as mais velhas, algumas poderão ter-se apercebido que a vibra­ção e o som são realidades simultâneas e indissociáveis, o que é um bom ponto de partida para a com­preensão dos fenómenos sonoros. O leitor já pensou na sequência incrível de vibrações que ocorrem (em diversos meios materiais de propagação, em geral) desde que um som é produzido até que nos apercebemos dele? Já ouviu certos ruídos de rua com as pontas dos dedos colocadas ao de leve numa vidraça de sua casa?

A visita que fiz ao Jardim-de-Infância de Famalicão reavivou no meu espírito uma ideia antiga: a de que seria interessante desenvolver projectos de índole científica nos jardins-de-infância. Da mesma maneira que, por exemplo, um projecto de natureza multicultural sensibiliza as crianças para a acei­tação dos outros, um projecto de base científica ajudará decerto as crianças a compreender o mundo físico que as rodeia, o que é igualmente importante.

Sabe-se que a melhor maneira de assimilar noções científicas é através da observação e da realiza­ção de experiências. Tais noções estão intimamente associadas a fenómenos da vida quotidiana envol­vendo o meio físico que nos rodeia. Pode-se, pois, imaginar brincadeiras e experiências com as múlti­plas realidades conhecidas das crianças, onde quer que vivam: o ar, a água, o solo, a luz, as plantas, os animais. A curiosidade natural das crianças leva-as certamente a interrogar-se, a ter dúvidas, sobre acontecimentos que presenciam. Por outro lado, um(a) educador(a) pode criar oportunidades ou pro­vocar situações que suscitem o interesse das crianças e as que a levem a formular perguntas. Pois bem, contrariamente à ideia comum de que a ciência é algo de muito complicado, a ciência é basicamente uma fonte de respostas para as dúvidas e perguntas das crianças... e dos adultos.

É claro que no jardim-de-infância, tal como na instrução primária, as respostas não devem ser mui­to técnicas. A criança não tem necessidade de explicações muito aprofundadas, nem seria capaz de as compreender. Precisa apenas que lhe expliquemos, em termos simples, o como e o porquê de certos fenómenos que se passam diariamente à sua volta. A criança procura sobretudo satisfazer a sua curio­sidade. E espera de nós que lhe alarguemos o campo dessa curiosidade, que alimentemos o seu interesse, que encorajemos o seu entusiasmo. É este o tipo de ciência que lhe convém e que ela é capaz de apreender. Vamos levar a ciência ao jardim-de-infância?


Artigo publicado em Cadernos de Educação de Infância, n.º 29, Janeiro-Fevereiro-Março.1994
NOTA - A Educadora Helena Martinho e os seus meninos do Jardim de Infância do Vimeiro (ano lectivo 2009-2010) concorreram ao Prémio Fundação Ilídio Pinho "Ciência na Escola - Artes da Física" com o projecto "Viagem ao Mundo da Luz" e ficaram no 1.º lugar do escalão pré-escolar. As fotografias acima dizem respeito a esta iniciativa.
http://www.slideshare.net/3zamar/viagem-ao-mundo-da-luz-1-prmio-cincia-na-escola-helena-martinho

Sem comentários:

Enviar um comentário