1. Num artigo publicado recentemente, teci algumas considerações sobre a relação professor-aluno e o seu papel no ensino (Expresso, 01-11-1996, “Ensino e realidade quotidiana”). Basicamente, limitei-me a registar um facto e, à guisa de corolário, foquei uma imagem e exprimi uma opinião.
O facto é este. São relativamente poucos os professores que conseguem fazer da sala de aula um espaço vivo e atraente, para onde os alunos vão com agrado, porque aí aprendem coisas interessantes e úteis (diga-se que uma boa aula pode acontecer fora das paredes da escola e à margem dos programas curriculares). Tal facto pode constatar-se em todos os graus de ensino. Nunca me hei-de esquecer da situação patética com que me vi confrontado no dia em que um professor universitário se me lamentou, com os olhos rasos de água, da sua dificuldade em “agarrar” os alunos de uma turma que nos era comum. Visivelmente, a boa vontade não lhe era suficiente, apesar de se tratar de um conceituado físico experimental.
A imagem focada foi a de que «dos professores, bem poderia dizer-se que são muitos os chamados... mas poucos os escolhidos».
Quanto à opinião, exprimi o entendimento de que «a preparação séria do futuro do País, pela via da formação escolar da sua juventude, está muito mais nas mãos de professores competentes e motivados do que em contínuas reformas do sistema de ensino».
2. Pode haver quem considere esta abordagem desproporcionada, por entender que se está a dar um ênfase excessivo à importância dos professores, em detrimento da importância que certas reformas (realmente) têm na valorização do sistema de ensino, sistema de que, afinal, os próprios professores fazem parte e onde, em última análise, se inscreve a sua acção.
Há que reconhecer que esta matéria “dá pano para mangas”, como se costuma dizer. Pela sua relevância e complexidade, o tema constitui natural motivo de reflexão e é susceptível de gerar controvérsia. Julgo que se justifica voltar ao assunto. Vale a pena tentar esclarecer duas ou três ideias sobre a questão em apreço.
3. Por analogia com os caricaturistas, que exageram certas particularidades dos retratados para tornar mais nítida a sua caracterização, sou tentado a imaginar dois casos extremos para melhor situar o problema. Esta metodologia é-me sugerida pela utilidade que, em ciência, se reconhece à chamada “passagem ao limite”...
Admitamos então, por hipótese, o seguinte: (a) num caso, dispõe-se de um sistema de ensino excelente, mas em que os professores são sofríveis; (b) no outro, dispõe-se de professores excelentes, mas os restantes componentes do sistema (meios materiais, Lei de Bases, programas curriculares, etc.) são apenas sofríveis.
Colocada a dicotomia neste pé, qual das duas situações extremas seria preferível para os nossos jovens, em termos educacionais? Pessoalmente, optaria pela segunda. De qualquer modo, a partir de uma resposta fundamentada à pergunta, é possível confrontar pontos de vista dissemelhantes.
4. Consideremos a educação pré-escolar, que é onde começa a jogar-se o que há de essencial para o futuro do País, em termos de preparação das nossas crianças. A reforma que está a ser feita a este nível, envolvendo em particular o alargamento da rede de jardins de infância, só pode ter o aplauso geral. Se, a médio e longo prazos, a “paixão” do actual primeiro-ministro [António Guterres] der frutos nesta área, só que seja nesta área, todos teremos razões para nos regozijar.
Para isso, todavia, é imprescindível prestar uma atenção muito especial à preparação dos educadores de infância, sem o que o projecto corre o risco de ficar coxo. É que a qualidade dos meios humanos postos ao serviço desta causa é determinante. Cada comunidade, cada turma, cada jovem é um caso particular, e não são os sistemas de ensino, em abstracto, que resolvem problemas específicos, mas sim pessoas concretas, os professores, com capacidade para ultrapassar no terreno as múltiplas dificuldades em que o ensino é pródigo.
O que se diz para a educação pré-escolar, em termos de esforço prioritário a empreender colectivamente, é válido para o ensino básico. Importa compreender que é nos alicerces que começa a solidez de um edifício em construção.
É por isso que aos professores – a começar precisamente pela educação pré-escolar e pelo ensino básico – deveria reconhecer-se um estatuto social concordante com a importância decisiva da sua missão e, em consequência, o direito a um salário compensador. Então, seria possível atrair os melhores e seleccionar os mais competentes e vocacionados.
5. Sendo os professores uma matéria-prima tão valiosa para o sistema de ensino, qual é o panorama de fundo subjacente ao seu recrutamento? Vejamos o que se passa actualmente.
Por deficiências do sistema de avaliação, mas também por decisões que favorecem o facilitismo, muitos estudantes chegam ao ensino superior praticamente analfabetos, tão deficientes são os seus conhecimentos básicos em disciplinas fundamentais. Basta ver as notas com que são admitidos nas universidades.
Muitos estudantes do ensino superior frequentam cursos a contragosto, por onde se arrastam anos e anos a fio com prejuízo geral, por se tratar de opções em segunda escolha. Outros há, também, para quem, pura e simplesmente, o passo a dar é maior do que o alcance da perna, e o resultado é o mesmo.
Por tudo isto (e não só, porventura), a qualidade de bastantes licenciados situa-se muito aquém dos limites mínimos exigíveis. Tenha-se presente os resultados de um estudo sobre a literacia dos portugueses, noticiado há um ano nos meios de comunicação.
Acresce, finalmente, que o mercado de trabalho se encontra em crise, mesmo para os mais habilitados.
Ora, é neste panorama que o ensino – que deveria ser um caso de “paixão” – surge para muitos diplomados como a única saída possível.
Se esta situação não é preocupante, então não há problemas graves entre nós. E poderemos continuar a fazer digestões tranquilas e sonolentas contemplando telenovelas. As propriamente ditas, e as outras.
Artigo publicado no jornal O MIRANTE em 20 de Novembro de 1996
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