sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Quando a Ribeira tinha água

Passei há dias pela ponte D. Luís, em Santarém, a caminho da Chamusca. Verifiquei que o Tejo está transformado num extenso terreno arenoso, onde despontam ervas e arbustos que lhe dão o inesperado aspecto de um campo verdejante no meio do rio. Sem querer, fui levada a recuar no tempo, aos tempos em que o rio Tejo e a Ribeira de Santarém tinham água...

Foi há muitos anos. Frequentava eu o Liceu de Santarém e habitava na Estação dos Caminhos de Ferro. O percurso era feito por todos nós, estudantes de poucos recursos, a pé, pela íngreme encosta que desemboca, cá em baixo, na Ribeira.

O Inverno chegava com a promessa de muita chuva e a perspectiva de subida das águas no Tejo. Quando vinha, a cheia ficava sempre por uns dias, ensopando a lezíria. Começava assim o ritual da festa.

Lembro as famílias mais humildes, com os parcos haveres amontoados, aproveitando a benesse que consistia em ter à disposição, em quantidade, a água que entrava pelas casas adentro e lhes permitia tudo lavar. O mobiliário de pinho resistia estoicamente à esfregadela vigorosa das escovas com o perfumado sabão amarelo, escovas que as mãos das mulheres habituadas à dureza da vida usavam com destreza. Por seu lado, os estendais pobres de roupa encardida e esburacada esvoaçavam às janelas, onde ficavam à espera do Sol, até enxugar.

Os "senhores" dispunham, como sempre, de outras regalias. Acomodavam-se nos primeiros andares e tinham quási sempre criados que os transportavam de barco e, no regresso a casa, os deixavam no primeiro degrau disponível, tranformado em cais durante a permanência da cheia. Era assim com a Maria Emília, a filha do talhante. No regresso das aulas, despedíamo-nos no fim da encosta. Depois, enquanto eu prosseguia o meu caminho lá no cimo, rumo a estação, ela aparecia e desaparecia nas ruas situadas no trajecto do barco, o qual era conduzido pelo criado do pai que vinha pontualmente buscar a menina. Via-a chegar junto ao portão escancarado por onde entrava o barco e donde me lançava um último aceno. Chegava a casa, sentava-me à janela da cozinha e, enquanto saboreava a merenda preparada pela Mãe, olhava o Tejo...

Habituais eram também as festas em casa de uns e de outros, em que os convivas chegavam divertidos nos barcos. E até os bailes no Clube da Ribeira, velho de tradições e de bela arquitectura interior, obedeciam aos ditames da cheia. Quando esta não impedia a realização do baile, o acesso à sala era feito sobre tábuas que se afundavam na lama.

O rio que guardo na memória não tem o aspecto estranho que lhe conheci há dias. Está ali, muito perto da janela, regorgitando água e a Ribeira inundada ergue arraiais nos estendais da roupa.

Crónica de Maria da Piedade Pinheiro Martinho publicada no jornal O MIRANTE em Dezembro de 1992

Ilustração: http://www.gcs.pt e http://omelhordeportugalestaaqui.blogspot.com .

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