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Foi há muitos anos. Frequentava eu o Liceu de Santarém e habitava na Estação dos Caminhos de Ferro. O percurso era feito por todos nós, estudantes de poucos recursos, a pé, pela íngreme encosta que desemboca, cá em baixo, na Ribeira.
O Inverno chegava com a promessa de muita chuva e a perspectiva de subida das águas no Tejo. Quando vinha, a cheia ficava sempre por uns dias, ensopando a lezíria. Começava assim o ritual da festa.
Lembro as famílias mais humildes, com os parcos haveres amontoados, aproveitando a benesse que consistia em ter à disposição, em quantidade, a água que entrava pelas casas adentro e lhes permitia tudo lavar. O mobiliário de pinho resistia estoicamente à esfregadela vigorosa das escovas com o perfumado sabão amarelo, escovas que as mãos das mulheres habituadas à dureza da vida usavam com destreza. Por seu lado, os estendais pobres de roupa encardida e esburacada esvoaçavam às janelas, onde ficavam à espera do Sol, até enxugar.
Habituais eram também as festas em casa de uns e de outros, em que os convivas chegavam divertidos nos barcos. E até os bailes no Clube da Ribeira, velho de tradições e de bela arquitectura interior, obedeciam aos ditames da cheia. Quando esta não impedia a realização do baile, o acesso à sala era feito sobre tábuas que se afundavam na lama.
O rio que guardo na memória não tem o aspecto estranho que lhe conheci há dias. Está ali, muito perto da janela, regorgitando água e a Ribeira inundada ergue arraiais nos estendais da roupa.
Crónica de Maria da Piedade Pinheiro Martinho publicada no jornal O MIRANTE em Dezembro de 1992
Ilustração: http://www.gcs.pt e http://omelhordeportugalestaaqui.blogspot.com .
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