segunda-feira, 31 de janeiro de 2011
domingo, 30 de janeiro de 2011
sábado, 29 de janeiro de 2011
sexta-feira, 28 de janeiro de 2011
Quando a Ribeira tinha água
Passei há dias pela ponte D. Luís, em Santarém, a caminho da Chamusca. Verifiquei que o Tejo está transformado num extenso terreno arenoso, onde despontam ervas e arbustos que lhe dão o inesperado aspecto de um campo verdejante no meio do rio. Sem querer, fui levada a recuar no tempo, aos tempos em que o rio Tejo e a Ribeira de Santarém tinham água...
Foi há muitos anos. Frequentava eu o Liceu de Santarém e habitava na Estação dos Caminhos de Ferro. O percurso era feito por todos nós, estudantes de poucos recursos, a pé, pela íngreme encosta que desemboca, cá em baixo, na Ribeira.
O Inverno chegava com a promessa de muita chuva e a perspectiva de subida das águas no Tejo. Quando vinha, a cheia ficava sempre por uns dias, ensopando a lezíria. Começava assim o ritual da festa.
Lembro as famílias mais humildes, com os parcos haveres amontoados, aproveitando a benesse que consistia em ter à disposição, em quantidade, a água que entrava pelas casas adentro e lhes permitia tudo lavar. O mobiliário de pinho resistia estoicamente à esfregadela vigorosa das escovas com o perfumado sabão amarelo, escovas que as mãos das mulheres habituadas à dureza da vida usavam com destreza. Por seu lado, os estendais pobres de roupa encardida e esburacada esvoaçavam às janelas, onde ficavam à espera do Sol, até enxugar.
Os "senhores" dispunham, como sempre, de outras regalias. Acomodavam-se nos primeiros andares e tinham quási sempre criados que os transportavam de barco e, no regresso a casa, os deixavam no primeiro degrau disponível, tranformado em cais durante a permanência da cheia. Era assim com a Maria Emília, a filha do talhante. No regresso das aulas, despedíamo-nos no fim da encosta. Depois, enquanto eu prosseguia o meu caminho lá no cimo, rumo a estação, ela aparecia e desaparecia nas ruas situadas no trajecto do barco, o qual era conduzido pelo criado do pai que vinha pontualmente buscar a menina. Via-a chegar junto ao portão escancarado por onde entrava o barco e donde me lançava um último aceno. Chegava a casa, sentava-me à janela da cozinha e, enquanto saboreava a merenda preparada pela Mãe, olhava o Tejo...
Habituais eram também as festas em casa de uns e de outros, em que os convivas chegavam divertidos nos barcos. E até os bailes no Clube da Ribeira, velho de tradições e de bela arquitectura interior, obedeciam aos ditames da cheia. Quando esta não impedia a realização do baile, o acesso à sala era feito sobre tábuas que se afundavam na lama.
O rio que guardo na memória não tem o aspecto estranho que lhe conheci há dias. Está ali, muito perto da janela, regorgitando água e a Ribeira inundada ergue arraiais nos estendais da roupa.
Crónica de Maria da Piedade Pinheiro Martinho publicada no jornal O MIRANTE em Dezembro de 1992
Ilustração: http://www.gcs.pt e http://omelhordeportugalestaaqui.blogspot.com .
Foi há muitos anos. Frequentava eu o Liceu de Santarém e habitava na Estação dos Caminhos de Ferro. O percurso era feito por todos nós, estudantes de poucos recursos, a pé, pela íngreme encosta que desemboca, cá em baixo, na Ribeira.
O Inverno chegava com a promessa de muita chuva e a perspectiva de subida das águas no Tejo. Quando vinha, a cheia ficava sempre por uns dias, ensopando a lezíria. Começava assim o ritual da festa.
Lembro as famílias mais humildes, com os parcos haveres amontoados, aproveitando a benesse que consistia em ter à disposição, em quantidade, a água que entrava pelas casas adentro e lhes permitia tudo lavar. O mobiliário de pinho resistia estoicamente à esfregadela vigorosa das escovas com o perfumado sabão amarelo, escovas que as mãos das mulheres habituadas à dureza da vida usavam com destreza. Por seu lado, os estendais pobres de roupa encardida e esburacada esvoaçavam às janelas, onde ficavam à espera do Sol, até enxugar.
Os "senhores" dispunham, como sempre, de outras regalias. Acomodavam-se nos primeiros andares e tinham quási sempre criados que os transportavam de barco e, no regresso a casa, os deixavam no primeiro degrau disponível, tranformado em cais durante a permanência da cheia. Era assim com a Maria Emília, a filha do talhante. No regresso das aulas, despedíamo-nos no fim da encosta. Depois, enquanto eu prosseguia o meu caminho lá no cimo, rumo a estação, ela aparecia e desaparecia nas ruas situadas no trajecto do barco, o qual era conduzido pelo criado do pai que vinha pontualmente buscar a menina. Via-a chegar junto ao portão escancarado por onde entrava o barco e donde me lançava um último aceno. Chegava a casa, sentava-me à janela da cozinha e, enquanto saboreava a merenda preparada pela Mãe, olhava o Tejo...
Habituais eram também as festas em casa de uns e de outros, em que os convivas chegavam divertidos nos barcos. E até os bailes no Clube da Ribeira, velho de tradições e de bela arquitectura interior, obedeciam aos ditames da cheia. Quando esta não impedia a realização do baile, o acesso à sala era feito sobre tábuas que se afundavam na lama.
O rio que guardo na memória não tem o aspecto estranho que lhe conheci há dias. Está ali, muito perto da janela, regorgitando água e a Ribeira inundada ergue arraiais nos estendais da roupa.
Crónica de Maria da Piedade Pinheiro Martinho publicada no jornal O MIRANTE em Dezembro de 1992
Ilustração: http://www.gcs.pt e http://omelhordeportugalestaaqui.blogspot.com .
quinta-feira, 27 de janeiro de 2011
quarta-feira, 26 de janeiro de 2011
terça-feira, 25 de janeiro de 2011
A nova "assinatura" da Isabel...
Desde muito cedo que a minha filha Maria Isabel manifestou interesse pela área das relações internacionais. Dizia então aos irmãos (Paulo Miguel, Maria Teresa e Maria Helena) que havia de “viajar pelo mundo”...
Entre 1985 e 1987 estudou no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (Universidade Técnica de Lisboa), de que guarda na memória as aulas do Prof. Adriano Moreira.
Entre 1987 e 1989 frequentou a Faculté des Sciences Sociales et Politiques (Université Libre de Bruxelles), onde completou a licence en Relations Internationales et Science Politique.
Em Abril de 1990, aquando do seu 23.º aniversário, encontrava-se no Paquistão em missão da Comunidade Europeia sobre o problema dos refugiados afegãos.
Em 1991, e após concurso, tomou posse do cargo de directora-adjunta do Centro Norte-Sul do Conselho da Europa. Esteve na Cimeira do Rio de Janeiro em 1992 e foi comissária do Conselho da Europa na Exposição Universal de Lisboa em 1998.
Em 2000, e após concurso, passou a ser funcionária da Comissão Europeia em Bruxelas, onde se mantém, tendo desempenhado várias missões em países de África e Caraíbas.
Esta é a breve resenha de vida da Isabel, cuja nova “assinatura” é a que fica registada abaixo.
[Cada filho com a sua história, seguindo a sua própria rota com o conforto de dispor de uma âncora...]
Isabel MARTINHO
Deputy Head of Unit / Desk Cuba
European External Action Service (EEAS)
Service européen pour l'Action extérieure (SEAE)
Caribbean Unit
Entre 1985 e 1987 estudou no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (Universidade Técnica de Lisboa), de que guarda na memória as aulas do Prof. Adriano Moreira.
Entre 1987 e 1989 frequentou a Faculté des Sciences Sociales et Politiques (Université Libre de Bruxelles), onde completou a licence en Relations Internationales et Science Politique.
Em Abril de 1990, aquando do seu 23.º aniversário, encontrava-se no Paquistão em missão da Comunidade Europeia sobre o problema dos refugiados afegãos.
Em 1991, e após concurso, tomou posse do cargo de directora-adjunta do Centro Norte-Sul do Conselho da Europa. Esteve na Cimeira do Rio de Janeiro em 1992 e foi comissária do Conselho da Europa na Exposição Universal de Lisboa em 1998.
Em 2000, e após concurso, passou a ser funcionária da Comissão Europeia em Bruxelas, onde se mantém, tendo desempenhado várias missões em países de África e Caraíbas.
Esta é a breve resenha de vida da Isabel, cuja nova “assinatura” é a que fica registada abaixo.
[Cada filho com a sua história, seguindo a sua própria rota com o conforto de dispor de uma âncora...]
Isabel MARTINHO
Deputy Head of Unit / Desk Cuba
European External Action Service (EEAS)
Service européen pour l'Action extérieure (SEAE)
Caribbean Unit
segunda-feira, 24 de janeiro de 2011
domingo, 23 de janeiro de 2011
Votei no Camões
13 de Janeiro de 1991, domingo esplendoroso de céu azul e de sol brilhando sem mácula. O São Pedro não se absteve no dia das eleições, para tranquilidade de uns e desespero de outros. Nem os santos conseguem agradar a gregos e troianos, está visto.
Àquela hora da manhã, o ar ainda um pouco fresco, já os carreirinhos de pessoas começavam a formar-se, uns para lá outros para cá, quais formigas diligentes que reservassem para si o direito de dar mais razão à sua cigarra.
Também eu fui no cortejo. Até à última hora, hesitei. Para mim, as cigarras – sem ofensa – tinham cantado muito bem. Que país se pode gabar de ter assim quatro candidatos de tão elevado calibre? [Esta é uma piada para o Mário Crespo, o que não teme a concorrência da televisão privada desde que possa contar com entrevistados de calibre elevado...] “Ouvindo-os, ninguém os leva presos”, dissera-me o amigo Zé Banana (não confundir com o caso das bananas que um candidato atirou à cara do outro), e era verdade. Daí a minha hesitação.
Uma coisa, sobretudo, me comoveu: eles eram todos muito amigos da juventude e dos pobrezinhos (pensionistas, reformados, etc.). Mas havia mais pontos em comum. Por exemplo: eram todos pela solidariedade, embora um fosse mais solidário do que os outros; telhados frágeis todos tinham, viu-se, ainda que o fax desse mais nas vistas; todos foram muito educados nos debates, mas dois levaram a coisa ao exagero; usavam todos bigodes, excepto três.
E foi nesta dúvida de não saber a quem dar o meu voto que meti os pés ao caminho. Tudo acabou por resolver-se em bem. Votei no Camões. À saída, deixei uma nota de cem na maca dos bombeiros. Atravessei a praça José Fontana de bem comigo próprio: tão cedo e... já tinha praticado duas BA (boas acções, em linguagem de escuteiros).
Para Outubro há mais. Até lá vai ser um “Deus nos acuda” de virtudes partidárias. “Agora nós”, já disseram uns. Os outros seguir-se-ão dentro de momentos
Texto publicado no jornal O MIRANTE em Janeiro de 1991
Ilustração: http://img254.imageshack.us/img254/7707/l0774eo0.jpg
Àquela hora da manhã, o ar ainda um pouco fresco, já os carreirinhos de pessoas começavam a formar-se, uns para lá outros para cá, quais formigas diligentes que reservassem para si o direito de dar mais razão à sua cigarra.
Também eu fui no cortejo. Até à última hora, hesitei. Para mim, as cigarras – sem ofensa – tinham cantado muito bem. Que país se pode gabar de ter assim quatro candidatos de tão elevado calibre? [Esta é uma piada para o Mário Crespo, o que não teme a concorrência da televisão privada desde que possa contar com entrevistados de calibre elevado...] “Ouvindo-os, ninguém os leva presos”, dissera-me o amigo Zé Banana (não confundir com o caso das bananas que um candidato atirou à cara do outro), e era verdade. Daí a minha hesitação.
Uma coisa, sobretudo, me comoveu: eles eram todos muito amigos da juventude e dos pobrezinhos (pensionistas, reformados, etc.). Mas havia mais pontos em comum. Por exemplo: eram todos pela solidariedade, embora um fosse mais solidário do que os outros; telhados frágeis todos tinham, viu-se, ainda que o fax desse mais nas vistas; todos foram muito educados nos debates, mas dois levaram a coisa ao exagero; usavam todos bigodes, excepto três.
E foi nesta dúvida de não saber a quem dar o meu voto que meti os pés ao caminho. Tudo acabou por resolver-se em bem. Votei no Camões. À saída, deixei uma nota de cem na maca dos bombeiros. Atravessei a praça José Fontana de bem comigo próprio: tão cedo e... já tinha praticado duas BA (boas acções, em linguagem de escuteiros).
Para Outubro há mais. Até lá vai ser um “Deus nos acuda” de virtudes partidárias. “Agora nós”, já disseram uns. Os outros seguir-se-ão dentro de momentos
Texto publicado no jornal O MIRANTE em Janeiro de 1991
Ilustração: http://img254.imageshack.us/img254/7707/l0774eo0.jpg
sábado, 22 de janeiro de 2011
sexta-feira, 21 de janeiro de 2011
quinta-feira, 20 de janeiro de 2011
Professores excelentes... precisam-se
1. Num artigo publicado recentemente, teci algumas considerações sobre a relação professor-aluno e o seu papel no ensino (Expresso, 01-11-1996, “Ensino e realidade quotidiana”). Basicamente, limitei-me a registar um facto e, à guisa de corolário, foquei uma imagem e exprimi uma opinião.
O facto é este. São relativamente poucos os professores que conseguem fazer da sala de aula um espaço vivo e atraente, para onde os alunos vão com agrado, porque aí aprendem coisas interessantes e úteis (diga-se que uma boa aula pode acontecer fora das paredes da escola e à margem dos programas curriculares). Tal facto pode constatar-se em todos os graus de ensino. Nunca me hei-de esquecer da situação patética com que me vi confrontado no dia em que um professor universitário se me lamentou, com os olhos rasos de água, da sua dificuldade em “agarrar” os alunos de uma turma que nos era comum. Visivelmente, a boa vontade não lhe era suficiente, apesar de se tratar de um conceituado físico experimental.
A imagem focada foi a de que «dos professores, bem poderia dizer-se que são muitos os chamados... mas poucos os escolhidos».
Quanto à opinião, exprimi o entendimento de que «a preparação séria do futuro do País, pela via da formação escolar da sua juventude, está muito mais nas mãos de professores competentes e motivados do que em contínuas reformas do sistema de ensino».
2. Pode haver quem considere esta abordagem desproporcionada, por entender que se está a dar um ênfase excessivo à importância dos professores, em detrimento da importância que certas reformas (realmente) têm na valorização do sistema de ensino, sistema de que, afinal, os próprios professores fazem parte e onde, em última análise, se inscreve a sua acção.
Há que reconhecer que esta matéria “dá pano para mangas”, como se costuma dizer. Pela sua relevância e complexidade, o tema constitui natural motivo de reflexão e é susceptível de gerar controvérsia. Julgo que se justifica voltar ao assunto. Vale a pena tentar esclarecer duas ou três ideias sobre a questão em apreço.
3. Por analogia com os caricaturistas, que exageram certas particularidades dos retratados para tornar mais nítida a sua caracterização, sou tentado a imaginar dois casos extremos para melhor situar o problema. Esta metodologia é-me sugerida pela utilidade que, em ciência, se reconhece à chamada “passagem ao limite”...
Admitamos então, por hipótese, o seguinte: (a) num caso, dispõe-se de um sistema de ensino excelente, mas em que os professores são sofríveis; (b) no outro, dispõe-se de professores excelentes, mas os restantes componentes do sistema (meios materiais, Lei de Bases, programas curriculares, etc.) são apenas sofríveis.
Colocada a dicotomia neste pé, qual das duas situações extremas seria preferível para os nossos jovens, em termos educacionais? Pessoalmente, optaria pela segunda. De qualquer modo, a partir de uma resposta fundamentada à pergunta, é possível confrontar pontos de vista dissemelhantes.
4. Consideremos a educação pré-escolar, que é onde começa a jogar-se o que há de essencial para o futuro do País, em termos de preparação das nossas crianças. A reforma que está a ser feita a este nível, envolvendo em particular o alargamento da rede de jardins de infância, só pode ter o aplauso geral. Se, a médio e longo prazos, a “paixão” do actual primeiro-ministro [António Guterres] der frutos nesta área, só que seja nesta área, todos teremos razões para nos regozijar.
Para isso, todavia, é imprescindível prestar uma atenção muito especial à preparação dos educadores de infância, sem o que o projecto corre o risco de ficar coxo. É que a qualidade dos meios humanos postos ao serviço desta causa é determinante. Cada comunidade, cada turma, cada jovem é um caso particular, e não são os sistemas de ensino, em abstracto, que resolvem problemas específicos, mas sim pessoas concretas, os professores, com capacidade para ultrapassar no terreno as múltiplas dificuldades em que o ensino é pródigo.
O que se diz para a educação pré-escolar, em termos de esforço prioritário a empreender colectivamente, é válido para o ensino básico. Importa compreender que é nos alicerces que começa a solidez de um edifício em construção.
É por isso que aos professores – a começar precisamente pela educação pré-escolar e pelo ensino básico – deveria reconhecer-se um estatuto social concordante com a importância decisiva da sua missão e, em consequência, o direito a um salário compensador. Então, seria possível atrair os melhores e seleccionar os mais competentes e vocacionados.
5. Sendo os professores uma matéria-prima tão valiosa para o sistema de ensino, qual é o panorama de fundo subjacente ao seu recrutamento? Vejamos o que se passa actualmente.
Por deficiências do sistema de avaliação, mas também por decisões que favorecem o facilitismo, muitos estudantes chegam ao ensino superior praticamente analfabetos, tão deficientes são os seus conhecimentos básicos em disciplinas fundamentais. Basta ver as notas com que são admitidos nas universidades.
Muitos estudantes do ensino superior frequentam cursos a contragosto, por onde se arrastam anos e anos a fio com prejuízo geral, por se tratar de opções em segunda escolha. Outros há, também, para quem, pura e simplesmente, o passo a dar é maior do que o alcance da perna, e o resultado é o mesmo.
Por tudo isto (e não só, porventura), a qualidade de bastantes licenciados situa-se muito aquém dos limites mínimos exigíveis. Tenha-se presente os resultados de um estudo sobre a literacia dos portugueses, noticiado há um ano nos meios de comunicação.
Acresce, finalmente, que o mercado de trabalho se encontra em crise, mesmo para os mais habilitados.
Ora, é neste panorama que o ensino – que deveria ser um caso de “paixão” – surge para muitos diplomados como a única saída possível.
Se esta situação não é preocupante, então não há problemas graves entre nós. E poderemos continuar a fazer digestões tranquilas e sonolentas contemplando telenovelas. As propriamente ditas, e as outras.
Artigo publicado no jornal O MIRANTE em 20 de Novembro de 1996
O facto é este. São relativamente poucos os professores que conseguem fazer da sala de aula um espaço vivo e atraente, para onde os alunos vão com agrado, porque aí aprendem coisas interessantes e úteis (diga-se que uma boa aula pode acontecer fora das paredes da escola e à margem dos programas curriculares). Tal facto pode constatar-se em todos os graus de ensino. Nunca me hei-de esquecer da situação patética com que me vi confrontado no dia em que um professor universitário se me lamentou, com os olhos rasos de água, da sua dificuldade em “agarrar” os alunos de uma turma que nos era comum. Visivelmente, a boa vontade não lhe era suficiente, apesar de se tratar de um conceituado físico experimental.
A imagem focada foi a de que «dos professores, bem poderia dizer-se que são muitos os chamados... mas poucos os escolhidos».
Quanto à opinião, exprimi o entendimento de que «a preparação séria do futuro do País, pela via da formação escolar da sua juventude, está muito mais nas mãos de professores competentes e motivados do que em contínuas reformas do sistema de ensino».
2. Pode haver quem considere esta abordagem desproporcionada, por entender que se está a dar um ênfase excessivo à importância dos professores, em detrimento da importância que certas reformas (realmente) têm na valorização do sistema de ensino, sistema de que, afinal, os próprios professores fazem parte e onde, em última análise, se inscreve a sua acção.
Há que reconhecer que esta matéria “dá pano para mangas”, como se costuma dizer. Pela sua relevância e complexidade, o tema constitui natural motivo de reflexão e é susceptível de gerar controvérsia. Julgo que se justifica voltar ao assunto. Vale a pena tentar esclarecer duas ou três ideias sobre a questão em apreço.
3. Por analogia com os caricaturistas, que exageram certas particularidades dos retratados para tornar mais nítida a sua caracterização, sou tentado a imaginar dois casos extremos para melhor situar o problema. Esta metodologia é-me sugerida pela utilidade que, em ciência, se reconhece à chamada “passagem ao limite”...
Admitamos então, por hipótese, o seguinte: (a) num caso, dispõe-se de um sistema de ensino excelente, mas em que os professores são sofríveis; (b) no outro, dispõe-se de professores excelentes, mas os restantes componentes do sistema (meios materiais, Lei de Bases, programas curriculares, etc.) são apenas sofríveis.
Colocada a dicotomia neste pé, qual das duas situações extremas seria preferível para os nossos jovens, em termos educacionais? Pessoalmente, optaria pela segunda. De qualquer modo, a partir de uma resposta fundamentada à pergunta, é possível confrontar pontos de vista dissemelhantes.
4. Consideremos a educação pré-escolar, que é onde começa a jogar-se o que há de essencial para o futuro do País, em termos de preparação das nossas crianças. A reforma que está a ser feita a este nível, envolvendo em particular o alargamento da rede de jardins de infância, só pode ter o aplauso geral. Se, a médio e longo prazos, a “paixão” do actual primeiro-ministro [António Guterres] der frutos nesta área, só que seja nesta área, todos teremos razões para nos regozijar.
Para isso, todavia, é imprescindível prestar uma atenção muito especial à preparação dos educadores de infância, sem o que o projecto corre o risco de ficar coxo. É que a qualidade dos meios humanos postos ao serviço desta causa é determinante. Cada comunidade, cada turma, cada jovem é um caso particular, e não são os sistemas de ensino, em abstracto, que resolvem problemas específicos, mas sim pessoas concretas, os professores, com capacidade para ultrapassar no terreno as múltiplas dificuldades em que o ensino é pródigo.
O que se diz para a educação pré-escolar, em termos de esforço prioritário a empreender colectivamente, é válido para o ensino básico. Importa compreender que é nos alicerces que começa a solidez de um edifício em construção.
É por isso que aos professores – a começar precisamente pela educação pré-escolar e pelo ensino básico – deveria reconhecer-se um estatuto social concordante com a importância decisiva da sua missão e, em consequência, o direito a um salário compensador. Então, seria possível atrair os melhores e seleccionar os mais competentes e vocacionados.
5. Sendo os professores uma matéria-prima tão valiosa para o sistema de ensino, qual é o panorama de fundo subjacente ao seu recrutamento? Vejamos o que se passa actualmente.
Por deficiências do sistema de avaliação, mas também por decisões que favorecem o facilitismo, muitos estudantes chegam ao ensino superior praticamente analfabetos, tão deficientes são os seus conhecimentos básicos em disciplinas fundamentais. Basta ver as notas com que são admitidos nas universidades.
Muitos estudantes do ensino superior frequentam cursos a contragosto, por onde se arrastam anos e anos a fio com prejuízo geral, por se tratar de opções em segunda escolha. Outros há, também, para quem, pura e simplesmente, o passo a dar é maior do que o alcance da perna, e o resultado é o mesmo.
Por tudo isto (e não só, porventura), a qualidade de bastantes licenciados situa-se muito aquém dos limites mínimos exigíveis. Tenha-se presente os resultados de um estudo sobre a literacia dos portugueses, noticiado há um ano nos meios de comunicação.
Acresce, finalmente, que o mercado de trabalho se encontra em crise, mesmo para os mais habilitados.
Ora, é neste panorama que o ensino – que deveria ser um caso de “paixão” – surge para muitos diplomados como a única saída possível.
Se esta situação não é preocupante, então não há problemas graves entre nós. E poderemos continuar a fazer digestões tranquilas e sonolentas contemplando telenovelas. As propriamente ditas, e as outras.
Artigo publicado no jornal O MIRANTE em 20 de Novembro de 1996
quarta-feira, 19 de janeiro de 2011
terça-feira, 18 de janeiro de 2011
domingo, 16 de janeiro de 2011
SCRATCH - Salto em Comprimento
Recordo aqui, para memória futura, uma incursão pela linguagem de programação Scratch (criada no MIT e disponibilizada em Maio de 2007) através de um projecto em que participei tendo por objecto uma modalidade desportiva: o salto em comprimento.
A utilização do Scratch teve a sua iniciação em Portugal com Teresa Martinho Marques, que concluiu o seu Mestrado em Tecnologias Educativas (Universidade de Lisboa, Outubro de 2009) com a tese “Recuperar o engenho a partir da necessidade, com recurso às tecnologias educativas: Contributo do ambiente gráfico de programação Scratch em contexto formal de aprendizagem”, http://3zamestrado.googlepages.com/TESEMESMOfinalteresamarques.pdf .
A utilização do Scratch teve a sua iniciação em Portugal com Teresa Martinho Marques, que concluiu o seu Mestrado em Tecnologias Educativas (Universidade de Lisboa, Outubro de 2009) com a tese “Recuperar o engenho a partir da necessidade, com recurso às tecnologias educativas: Contributo do ambiente gráfico de programação Scratch em contexto formal de aprendizagem”, http://3zamestrado.googlepages.com/TESEMESMOfinalteresamarques.pdf .
http://kids.sapo.pt/scratch/projects/ffred/607
Nas respectivas Notas diz-se que o projecto “Salto em Comprimento” foi executado em parceria por "edmartinho" e "ffred". De facto, a minha colaboração consistiu apenas na elaboração do modelo físico-matemático do projecto, tendo o programa sido escrito por Fernando Frederico que é um conceituado especialista em programação Scratch.
A meu ver, o projecto é interessante e instrutivo do ponto de vista da aplicação da Física ao Desporto. Vale a pena explorá-lo.
sábado, 15 de janeiro de 2011
sexta-feira, 14 de janeiro de 2011
Ensino e realidade quotidiana
1. No fim da aula, um jovem abeirou-se da professora e perguntou-lhe, num misto de candura e provocação:
– S’tora, afinal para que me serve a matemática?
Apanhada de surpresa, a professora respondeu-lhe de pronto:
– Olha, serve para não seres enganado quando vais fazer compras.
Não sei qual foi a sequência deste diálogo, nem isso é relevante aqui. Julgo apenas que foi uma pergunta curiosa, no mínimo, e que a resposta não podia ter sido mais objectiva, embora pudesse ter sido outra. De qualquer modo, é de crer que tenham ficado pontes para diálogos futuros.
De vez em quando, lembro-me deste episódio, que me foi contado em primeira mão. Na sua singeleza, faz-me pensar numa série de questões, aparentemente desconexas, mas tendo por denominador comum o papel da relação professor-aluno no ensino.
4. Aquele diálogo faz-me pensar, ainda, na necessidade de encarar com serenidade as perguntas dos alunos, por mais desconcertantes que elas sejam, e de procurar dar-lhes resposta adequada, em cada caso e consoante as circunstâncias. Ora, isto nem sempre se verifica, basicamente por duas ordens de razões: porque a resposta não é fácil ou imediata, ou então porque o professor tem dificuldade em admitir que não está habilitado a responder. Quando tal acontece, não raras vezes há a tentação de “despachar” o aluno com uma resposta qualquer.
Nesta matéria, há que reconhecer dois factos essenciais. O primeiro, é que é fácil, a um jovem curioso, fazer perguntas difíceis. O segundo, é que um professor não é uma pessoa obrigada a saber tudo (ninguém sabe tudo!). Entendido isto, por qualquer das partes, a relação professor-aluno pode ganhar a dimensão desejável, assente numa base de confiança recíproca. Se um professor não está, de momento, em condições de responder a uma dada pergunta, deve simplesmente admitir isso mesmo, procurar informar-se e, depois, satisfazer a curiosidade do aluno. Qualquer jovem compreende, e respeita, uma atitude de humildade e de honestidade intelectual. O que não aceita, nem desculpa, no momento ou a prazo, é que lhe dêem respostas apressadas ou tolas.
Artigo publicado no semanário Expresso em 01.Nov.1996
– S’tora, afinal para que me serve a matemática?
Apanhada de surpresa, a professora respondeu-lhe de pronto:
– Olha, serve para não seres enganado quando vais fazer compras.
Não sei qual foi a sequência deste diálogo, nem isso é relevante aqui. Julgo apenas que foi uma pergunta curiosa, no mínimo, e que a resposta não podia ter sido mais objectiva, embora pudesse ter sido outra. De qualquer modo, é de crer que tenham ficado pontes para diálogos futuros.
De vez em quando, lembro-me deste episódio, que me foi contado em primeira mão. Na sua singeleza, faz-me pensar numa série de questões, aparentemente desconexas, mas tendo por denominador comum o papel da relação professor-aluno no ensino.
2. Faz-me pensar, por exemplo, na necessidade que há de enquadrar os conhecimentos que se ministram, adaptando-os com espírito criativo à realidade quotidiana, para que o que se ensina ganhe consistência e faça sentido. Por outras palavras, para que a sala de aula seja um espaço vivo e atraente. Qualquer disciplina – seja o Português, a Matemática, a História, a Física, e por aí adiante – pode ser inesperadamente interessante ou mortalmente enfadonha. Depende do professor. E cabe a cada um descobrir as vias de acesso apropriadas para “conquistar” os alunos. Não é fácil, mas é um desafio estimulante. E, se o desafio for vencido, o esforço revela-se gratificante.
É certo que o professor pode encontrar, na pedagogia, ensinamentos no sentido de tornar mais eficaz a sua aptidão para comunicar, e também é verdade que a competência específica do professor na disciplina ministrada, assim como a sua cultura geral, contribuem muito para o enriquecimento da relação professor-aluno. Todavia, estas são apenas condições necessárias, que não suficientes para o objectivo pretendido.
Há qualquer coisa de indefinível, que “não vem nos livros”, que faz com que os bons professores – aqueles que marcam os alunos e são recordados com carinho – se destaquem dos outros. Serão, em geral, as qualidades humanas? o perfil físico? o tom de voz? a experiência? o empenhamento? a imaginação? a disponibilidade? o jeito para dialogar? a capacidade de fomentar e gerir cumplicidades? será uma vocação natural? Não sei. Sei apenas que dos professores bem se poderia dizer que «são muitos os chamados... mas poucos os escolhidos».
É certo que o professor pode encontrar, na pedagogia, ensinamentos no sentido de tornar mais eficaz a sua aptidão para comunicar, e também é verdade que a competência específica do professor na disciplina ministrada, assim como a sua cultura geral, contribuem muito para o enriquecimento da relação professor-aluno. Todavia, estas são apenas condições necessárias, que não suficientes para o objectivo pretendido.
Há qualquer coisa de indefinível, que “não vem nos livros”, que faz com que os bons professores – aqueles que marcam os alunos e são recordados com carinho – se destaquem dos outros. Serão, em geral, as qualidades humanas? o perfil físico? o tom de voz? a experiência? o empenhamento? a imaginação? a disponibilidade? o jeito para dialogar? a capacidade de fomentar e gerir cumplicidades? será uma vocação natural? Não sei. Sei apenas que dos professores bem se poderia dizer que «são muitos os chamados... mas poucos os escolhidos».
3. Em consequência, o episódio faz-me pensar como seria importante que os políticos compreendessem, e assumissem, que a preparação séria do futuro do País, pela via da formação escolar da juventude, está muito mais nas mãos de professores competentes e motivados do que em contínuas reformas do sistema de ensino. (...)
4. Aquele diálogo faz-me pensar, ainda, na necessidade de encarar com serenidade as perguntas dos alunos, por mais desconcertantes que elas sejam, e de procurar dar-lhes resposta adequada, em cada caso e consoante as circunstâncias. Ora, isto nem sempre se verifica, basicamente por duas ordens de razões: porque a resposta não é fácil ou imediata, ou então porque o professor tem dificuldade em admitir que não está habilitado a responder. Quando tal acontece, não raras vezes há a tentação de “despachar” o aluno com uma resposta qualquer.
Nesta matéria, há que reconhecer dois factos essenciais. O primeiro, é que é fácil, a um jovem curioso, fazer perguntas difíceis. O segundo, é que um professor não é uma pessoa obrigada a saber tudo (ninguém sabe tudo!). Entendido isto, por qualquer das partes, a relação professor-aluno pode ganhar a dimensão desejável, assente numa base de confiança recíproca. Se um professor não está, de momento, em condições de responder a uma dada pergunta, deve simplesmente admitir isso mesmo, procurar informar-se e, depois, satisfazer a curiosidade do aluno. Qualquer jovem compreende, e respeita, uma atitude de humildade e de honestidade intelectual. O que não aceita, nem desculpa, no momento ou a prazo, é que lhe dêem respostas apressadas ou tolas.
Artigo publicado no semanário Expresso em 01.Nov.1996
quarta-feira, 12 de janeiro de 2011
segunda-feira, 10 de janeiro de 2011
domingo, 9 de janeiro de 2011
A alternativa que nos deixam como herança...
quinta-feira, 6 de janeiro de 2011
Vamos levar a Ciência ao Jardim de Infância?
Há algum tempo, tive a oportunidade de visitar o Jardim-de-Infância de Famalicão (Nazaré) a convite da educadora Helena Martinho. Antes de prosseguir, devo dizer que foi reconfortante ver um espaço animado como aquele, cheio de imaginação e disponibilidade, onde se torna evidente que as crianças são felizes e vão “crescendo” enquanto brincam.
Em dado momento, vi-me rodeado de crianças, todas querendo que lhes arranjasse um instrumento de sopro como o que tinha feito para uma delas. Que acontecera?
Quando chegámos ao espaço ao ar livre adjacente ao Jardim, também ele preparado para desafios amigáveis de superação – as crianças até podiam atravessar rios com crocodilos coloridos, de olhos arregalados, com a ajuda de uma corda pendurada, como se fossem Tarzans... –, apercebi-me de que havia um canavial ali perto e, por associação de ideias, lembrei-me dos meus tempos de miúdo. Nessa altura, como os brinquedos escasseavam, brincava-se com o que havia à mão: faziam-se barcos com casca de pinheiro, juntas de bois com folhas de piteira, armas de arremesso com pequenos troncos ocos de sabugueiro e arranjavam-se instrumentos sonoros com materiais diversos a que tínhamos acesso no campo.
Uma das maneiras mais simples de produzir um som divertido consiste em soprar numa das folhas mais novas de uma cana verde, isto é, as folhas ainda enroladas que se situam na extremidade da cana e que se extraem facilmente puxando-as no sentido do crescimento. Foi deste tipo de brincadeira que me lembrei quando vi o canavial. Chamei uma das crianças e perguntei-lhe se queria um apito. A perspectiva entusiasmou-a, o empreendimento teve sucesso e a notícia espalhou-se. Foi assim que me vi rodeado de crianças. Escusado será dizer que as folhas novas do canavial é que sofreram com o êxito da iniciativa.
O sucedido teve ainda um elemento enriquecedor complementar. Quando se sopra numa folha de cana, sente-se nos dedos a vibração do instrumento. Chamando a atenção das crianças para esse facto, como fiz com as mais velhas, algumas poderão ter-se apercebido que a vibração e o som são realidades simultâneas e indissociáveis, o que é um bom ponto de partida para a compreensão dos fenómenos sonoros. O leitor já pensou na sequência incrível de vibrações que ocorrem (em diversos meios materiais de propagação, em geral) desde que um som é produzido até que nos apercebemos dele? Já ouviu certos ruídos de rua com as pontas dos dedos colocadas ao de leve numa vidraça de sua casa?
A visita que fiz ao Jardim-de-Infância de Famalicão reavivou no meu espírito uma ideia antiga: a de que seria interessante desenvolver projectos de índole científica nos jardins-de-infância. Da mesma maneira que, por exemplo, um projecto de natureza multicultural sensibiliza as crianças para a aceitação dos outros, um projecto de base científica ajudará decerto as crianças a compreender o mundo físico que as rodeia, o que é igualmente importante.
Sabe-se que a melhor maneira de assimilar noções científicas é através da observação e da realização de experiências. Tais noções estão intimamente associadas a fenómenos da vida quotidiana envolvendo o meio físico que nos rodeia. Pode-se, pois, imaginar brincadeiras e experiências com as múltiplas realidades conhecidas das crianças, onde quer que vivam: o ar, a água, o solo, a luz, as plantas, os animais. A curiosidade natural das crianças leva-as certamente a interrogar-se, a ter dúvidas, sobre acontecimentos que presenciam. Por outro lado, um(a) educador(a) pode criar oportunidades ou provocar situações que suscitem o interesse das crianças e as que a levem a formular perguntas. Pois bem, contrariamente à ideia comum de que a ciência é algo de muito complicado, a ciência é basicamente uma fonte de respostas para as dúvidas e perguntas das crianças... e dos adultos.
É claro que no jardim-de-infância, tal como na instrução primária, as respostas não devem ser muito técnicas. A criança não tem necessidade de explicações muito aprofundadas, nem seria capaz de as compreender. Precisa apenas que lhe expliquemos, em termos simples, o como e o porquê de certos fenómenos que se passam diariamente à sua volta. A criança procura sobretudo satisfazer a sua curiosidade. E espera de nós que lhe alarguemos o campo dessa curiosidade, que alimentemos o seu interesse, que encorajemos o seu entusiasmo. É este o tipo de ciência que lhe convém e que ela é capaz de apreender. Vamos levar a ciência ao jardim-de-infância?
http://www.slideshare.net/3zamar/viagem-ao-mundo-da-luz-1-prmio-cincia-na-escola-helena-martinho
Em dado momento, vi-me rodeado de crianças, todas querendo que lhes arranjasse um instrumento de sopro como o que tinha feito para uma delas. Que acontecera?
Quando chegámos ao espaço ao ar livre adjacente ao Jardim, também ele preparado para desafios amigáveis de superação – as crianças até podiam atravessar rios com crocodilos coloridos, de olhos arregalados, com a ajuda de uma corda pendurada, como se fossem Tarzans... –, apercebi-me de que havia um canavial ali perto e, por associação de ideias, lembrei-me dos meus tempos de miúdo. Nessa altura, como os brinquedos escasseavam, brincava-se com o que havia à mão: faziam-se barcos com casca de pinheiro, juntas de bois com folhas de piteira, armas de arremesso com pequenos troncos ocos de sabugueiro e arranjavam-se instrumentos sonoros com materiais diversos a que tínhamos acesso no campo.
Uma das maneiras mais simples de produzir um som divertido consiste em soprar numa das folhas mais novas de uma cana verde, isto é, as folhas ainda enroladas que se situam na extremidade da cana e que se extraem facilmente puxando-as no sentido do crescimento. Foi deste tipo de brincadeira que me lembrei quando vi o canavial. Chamei uma das crianças e perguntei-lhe se queria um apito. A perspectiva entusiasmou-a, o empreendimento teve sucesso e a notícia espalhou-se. Foi assim que me vi rodeado de crianças. Escusado será dizer que as folhas novas do canavial é que sofreram com o êxito da iniciativa.
O sucedido teve ainda um elemento enriquecedor complementar. Quando se sopra numa folha de cana, sente-se nos dedos a vibração do instrumento. Chamando a atenção das crianças para esse facto, como fiz com as mais velhas, algumas poderão ter-se apercebido que a vibração e o som são realidades simultâneas e indissociáveis, o que é um bom ponto de partida para a compreensão dos fenómenos sonoros. O leitor já pensou na sequência incrível de vibrações que ocorrem (em diversos meios materiais de propagação, em geral) desde que um som é produzido até que nos apercebemos dele? Já ouviu certos ruídos de rua com as pontas dos dedos colocadas ao de leve numa vidraça de sua casa?
A visita que fiz ao Jardim-de-Infância de Famalicão reavivou no meu espírito uma ideia antiga: a de que seria interessante desenvolver projectos de índole científica nos jardins-de-infância. Da mesma maneira que, por exemplo, um projecto de natureza multicultural sensibiliza as crianças para a aceitação dos outros, um projecto de base científica ajudará decerto as crianças a compreender o mundo físico que as rodeia, o que é igualmente importante.
Sabe-se que a melhor maneira de assimilar noções científicas é através da observação e da realização de experiências. Tais noções estão intimamente associadas a fenómenos da vida quotidiana envolvendo o meio físico que nos rodeia. Pode-se, pois, imaginar brincadeiras e experiências com as múltiplas realidades conhecidas das crianças, onde quer que vivam: o ar, a água, o solo, a luz, as plantas, os animais. A curiosidade natural das crianças leva-as certamente a interrogar-se, a ter dúvidas, sobre acontecimentos que presenciam. Por outro lado, um(a) educador(a) pode criar oportunidades ou provocar situações que suscitem o interesse das crianças e as que a levem a formular perguntas. Pois bem, contrariamente à ideia comum de que a ciência é algo de muito complicado, a ciência é basicamente uma fonte de respostas para as dúvidas e perguntas das crianças... e dos adultos.
É claro que no jardim-de-infância, tal como na instrução primária, as respostas não devem ser muito técnicas. A criança não tem necessidade de explicações muito aprofundadas, nem seria capaz de as compreender. Precisa apenas que lhe expliquemos, em termos simples, o como e o porquê de certos fenómenos que se passam diariamente à sua volta. A criança procura sobretudo satisfazer a sua curiosidade. E espera de nós que lhe alarguemos o campo dessa curiosidade, que alimentemos o seu interesse, que encorajemos o seu entusiasmo. É este o tipo de ciência que lhe convém e que ela é capaz de apreender. Vamos levar a ciência ao jardim-de-infância?
Artigo publicado em Cadernos de Educação de Infância, n.º 29, Janeiro-Fevereiro-Março.1994
NOTA - A Educadora Helena Martinho e os seus meninos do Jardim de Infância do Vimeiro (ano lectivo 2009-2010) concorreram ao Prémio Fundação Ilídio Pinho "Ciência na Escola - Artes da Física" com o projecto "Viagem ao Mundo da Luz" e ficaram no 1.º lugar do escalão pré-escolar. As fotografias acima dizem respeito a esta iniciativa.
quarta-feira, 5 de janeiro de 2011
Homenagem a Malangatana
Malangatana com Teresa Martinho Marques (blogue Tempo de Teia) http://tempodeteia.blogspot.com/2009/03/dia-inesquecivel.html
terça-feira, 4 de janeiro de 2011
domingo, 2 de janeiro de 2011
Esperar o (im)possível
O início de um Novo Ano convida sempre a formular esperança em melhores dias. Também eu não resisto à tentação de desejar o (im)possível, em três votos.
1. Penso não ser demasiadamente lírico afirmar que houve tempo, no pós-25 de Abril, em que os portugueses confiaram nos políticos. Com mais ou menos ingenuidade, os portugueses acreditaram nas suas promessas e, através delas, entreviram uma esperança no futuro. Foi pensando num devir mais digno que os sufragaram em tempo de eleições, acreditando que seriam os mais capazes. Foi no dever de cuidar pelas esperanças colectivas que encontraram justificação para lhes dar assento (e vencimento) na Assembleia da República, no Governo, nas Autarquias, em suma, no Poder.
A verdade, porém, é que as expectativas foram falhando sucessiva e sistematicamente, ao longo do tempo. E, agora, o cidadão comum não acredita mais nos políticos. Compreende-se que assim seja, porque a generosidade tem limites. Ser simples não significa ser permeável a tudo. Maltratado vezes sem conta, traído despudoradamente por aqueles que prometem e não cumprem -- mas que juram cumprir com lealdade as funções para que são eleitos ou nomeados -- vendo exemplos deploráveis onde devia existir competência, honestidade e sentido de bem-servir, o cidadão comum tornou-se um desconfiado visceral. Basta ver como reage, natural e convictamente, à mais pequena promessa de melhoria, seja ela de que natureza for: “Só acredito quando vir!”. É esta profunda crise de confiança o resultado desastroso a que se chegou em consequência do faz-de-conta dos políticos. Que 1995 nos traga um começo da enorme tarefa de recuperar a confiança perdida, eis o meu primeiro voto.
2. É preciso, sobretudo, recuperar a confiança dos jovens, em nome de um futuro que faça sentido a prazo. As manifestações hostis da juventude durante 1994 são, no cerne, um sintoma da crise que se instalou e que urge erradicar. Os jovens interrogam-se sobre as suas perspectivas e o panorama está longe de ser encorajante. Faltam-lhes valores de referência na sociedade dos “crescidos”. Falta-lhes acreditar que a felicidade é possível. Paradoxalmente, ou talvez não, as ofertas da “democracia de sucesso” -- onde imperam mais os números do que as pessoas, onde grassa o espírito de subir na vida fácil e rapidamente -- não satisfazem os jovens. Daí que as manifestações tenham roçado a falta de respeito, o que é sintomático e devia constituir um sério aviso para os responsáveis por este estado de coisas. A irreverência não justifica tudo o que se passou. O desencanto, talvez. Que 1995 nos traga um começo da enorme tarefa de dignificar a sociedade de amanhã, eis o meu segundo voto.
3. A propósito de jovens e de futuro colectivo, há que referir a crise da Educação em Portugal. Surpreende-me, desde há muito, que os dirigentes de todos os quadrantes políticos não tenham entendido como reconhecidamente necessário, e irrecusavelmente possível, o interesse nacional de ser estabelecido um Pacto de Educação entre os partidos políticos, com base no qual fosse traçado um rumo consistente para a Educação no nosso País, independentemente de quem tivesse a responsabilidade governativa. Recentemente, aquando do Congresso “Portugal, que Futuro?”, este tema foi objecto de uma intervenção, na ocorrência por parte de um dirigente de um partido com assento na Assembleia da República. Tanto quanto é do meu conhecimento, esta terá sido a primeira vez que tal questão foi formulada publicamente. Todavia, pelo eco que (não) teve essa proposta, temo que os resultados práticos sejam nulos.
1. Penso não ser demasiadamente lírico afirmar que houve tempo, no pós-25 de Abril, em que os portugueses confiaram nos políticos. Com mais ou menos ingenuidade, os portugueses acreditaram nas suas promessas e, através delas, entreviram uma esperança no futuro. Foi pensando num devir mais digno que os sufragaram em tempo de eleições, acreditando que seriam os mais capazes. Foi no dever de cuidar pelas esperanças colectivas que encontraram justificação para lhes dar assento (e vencimento) na Assembleia da República, no Governo, nas Autarquias, em suma, no Poder.
A verdade, porém, é que as expectativas foram falhando sucessiva e sistematicamente, ao longo do tempo. E, agora, o cidadão comum não acredita mais nos políticos. Compreende-se que assim seja, porque a generosidade tem limites. Ser simples não significa ser permeável a tudo. Maltratado vezes sem conta, traído despudoradamente por aqueles que prometem e não cumprem -- mas que juram cumprir com lealdade as funções para que são eleitos ou nomeados -- vendo exemplos deploráveis onde devia existir competência, honestidade e sentido de bem-servir, o cidadão comum tornou-se um desconfiado visceral. Basta ver como reage, natural e convictamente, à mais pequena promessa de melhoria, seja ela de que natureza for: “Só acredito quando vir!”. É esta profunda crise de confiança o resultado desastroso a que se chegou em consequência do faz-de-conta dos políticos. Que 1995 nos traga um começo da enorme tarefa de recuperar a confiança perdida, eis o meu primeiro voto.
2. É preciso, sobretudo, recuperar a confiança dos jovens, em nome de um futuro que faça sentido a prazo. As manifestações hostis da juventude durante 1994 são, no cerne, um sintoma da crise que se instalou e que urge erradicar. Os jovens interrogam-se sobre as suas perspectivas e o panorama está longe de ser encorajante. Faltam-lhes valores de referência na sociedade dos “crescidos”. Falta-lhes acreditar que a felicidade é possível. Paradoxalmente, ou talvez não, as ofertas da “democracia de sucesso” -- onde imperam mais os números do que as pessoas, onde grassa o espírito de subir na vida fácil e rapidamente -- não satisfazem os jovens. Daí que as manifestações tenham roçado a falta de respeito, o que é sintomático e devia constituir um sério aviso para os responsáveis por este estado de coisas. A irreverência não justifica tudo o que se passou. O desencanto, talvez. Que 1995 nos traga um começo da enorme tarefa de dignificar a sociedade de amanhã, eis o meu segundo voto.
3. A propósito de jovens e de futuro colectivo, há que referir a crise da Educação em Portugal. Surpreende-me, desde há muito, que os dirigentes de todos os quadrantes políticos não tenham entendido como reconhecidamente necessário, e irrecusavelmente possível, o interesse nacional de ser estabelecido um Pacto de Educação entre os partidos políticos, com base no qual fosse traçado um rumo consistente para a Educação no nosso País, independentemente de quem tivesse a responsabilidade governativa. Recentemente, aquando do Congresso “Portugal, que Futuro?”, este tema foi objecto de uma intervenção, na ocorrência por parte de um dirigente de um partido com assento na Assembleia da República. Tanto quanto é do meu conhecimento, esta terá sido a primeira vez que tal questão foi formulada publicamente. Todavia, pelo eco que (não) teve essa proposta, temo que os resultados práticos sejam nulos.
Dizia Séneca que “não há vento favorável para quem não sabe para onde quer ir”. O desígnio da Educação em Portugal é, em certa medida, comparável ao rumo das caravelas quinhentistas: o rumo de uma aventura que vale a pena ser vivida. Assim os dirigentes políticos tenham sensibilidade e coragem para romper com o passado recente nesta matéria. Que 1995 nos traga um começo da enorme tarefa de recuperar o tempo perdido, eis o meu último voto.
Artigo publicado no jornal O MIRANTE em 03.Janeiro.1995
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