«[…] Deixei-me ficar assim algum tempo, disposto a lançar mão delas, e levá-las para casa com o fim de as estudar, interrogar, e depois escrever uma memória, que remeteria a todas as academias do mundo. Pensava também em as apresentar nos circos de cavalinhos, ou ir vendê-las a Nova Iorque. Depois, abri mão de todos esses projectos. Se elas queriam a paz, uma velhice sossegada, por que motivo iria eu arrancá-las a essa justa paga de uma vida cansada e laboriosa? Tinham servido tanto! Tinham rolado todos os degraus da escala social; chegavam ao último, a praia, a triste Praia de Santa Luzia... Não, velhas botas! Melhor é que fiqueis aí no derradeiro descanso.
Nisto vi chegar um sujeito
maltrapilho; era um mendigo. Pediu-me uma esmola; dei-lhe um níquel.
MENDIGO.- Deus lhe pague,
meu senhor! (Vendo as botas) Um par de botas! Foi um anjo que as pôs
aqui...
EU (ao mendigo).-
Mas, espere...
MENDIGO.- Espere o quê? Se
lhe digo que estou descalço! (Pegando nas botas) Estão bem boas!
Cosendo-se isto aqui, com um barbante...
BOTA DIREITA.- Que é isto,
mana? Que é isto? Alguém pega em nós... Eu sinto-me no ar...
BOTA ESQUERDA.- É um
mendigo.
BOTA DIREITA.- Um mendigo?
Que quererá ele?
BOTA DIREITA (alvoroçada).-
Será possível?
BOTA ESQUERDA.- Vaidosa!
BOTA DIREITA.- Ah! mana! esta
é a filosofia verdadeira: — Não há bota velha que não encontre um pé cambaio.»
Texto Fonte: Obra Completa de Machado
de Assis,Vol. III
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
Publicado originalmente em O
Cruzeiro, 23 de Abril de 1878.
http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=6355
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