Meu artigo publicado em ALMA NOVA –
Suplemento de O
MIRANTE, 13.Ago.1997
Produzir um discurso não é tarefa fácil. Quem já o fez,
ou tentou fazer, sabe que é assim. Preparar uma série de discursos para serem
debitados numa campanha eleitoral, por exemplo, é obviamente ainda mais
complicado. Acresce que se gasta imenso tempo a confeccionar discursos, as mais
das vezes em pura perda. Os reais ou potenciais candidatos às eleições
autárquicas que se avizinham devem saber do que se está a falar... Mas não são
só esses que poderão beneficiar com a receita de discursos à la carte
contida nesta prosa. Se o leitor é, ou pode vir a ser, um candidato a qualquer
cargo (autarquia, cooperativa, associação cultural, clube desportivo, etc.) e
tem necessidade de “inspiração” em matéria de oralidade, não desista, vá até ao
fim. E mais: guarde este escrito, porque poderá ser-lhe de grande utilidade.
Note-se que não estamos a falar de discursos em que o
orador queira exprimir ideias claras, em bom português. Não, não é disso que se
trata. Convém ter a noção da relatividade das coisas: possuir ideias próprias
é um bem escasso, exprimir ideias com clareza é um luxo e expor ideias claras,
em bom português, é uma raridade, já não se usa. Em consequência, e porque não
se pretende enganar ninguém, fica esclarecido que aquilo de que estamos a
tratar é de discursos do tipo “buraco negro”, isto é, discursos enfáticos em
que se fala muito sem dizer nada. Reconheça-se que tal tipo de discurso é de
extrema conveniência nas situações em que o orador pretenda impressionar o
auditório, sem se comprometer, sobretudo sem se comprometer.
Para conseguir os seus intentos, o candidato a orador só
tem que se orientar pelo Guia prático de discursos, de autor
anónimo, que apresentamos neste artigo. Trata-se de um pequeno conjunto de
“frases”, distribuídas por um quadro com quatro colunas e dez linhas, a serem
encadeadas com uma certa sequência. O guia permite cerca de 10000 combinações
das referidas “frases”, proporcionando um discurso fluido de 40 horas, o que
equivale a 80 discursos de meia hora. É obra!
A utilização do guia é muito fácil. Vejamos como se
procede. É assim: Começa-se pela primeira linha da Coluna 1 – Minhas
senhoras e meus senhores –, que é sempre uma maneira apropriada de iniciar
um discurso. Seguidamente, passa-se para uma linha qualquer da Coluna 2, depois
para qualquer linha da Coluna 3 e, finalmente, para uma linha qualquer da
Coluna 4. Chegado aqui, o candidato a orador só tem que regressar à Coluna 1, e
continuar a saltar de coluna em coluna, sem se preocupar com a ordem da linha
escolhida. Bate sempre certo.
Exemplificando, para os mais inexperientes nestas lides: Minhas
senhoras e meus senhores, a consulta aos numerosos militantes obriga-nos a uma
análise das directrizes de desenvolvimento para o futuro. A prática do
quotidiano demonstra que o cumprimento das linhas do programa facilita a
criação dos modelos de desenvolvimento. Por outro lado, o início da acção geral
de formação de atitudes garante a participação de um grupo importante na
concretização das novas propostas. Etc. Etc. Como se vê, este é o tipo de
discurso que, não servindo para nada, serve para tudo, com a vantagem de poder
ter uma dada interpretação e a interpretação exactamente contrária.
É claro que o candidato a orador necessita de adequar o
discurso às circunstâncias. Por exemplo, pode não fazer sentido falar de
militantes, mas sim de munícipes, conterrâneos, associados, camaradas, etc. Por outro lado, convém dar um toque pessoal ao seu discurso.
Fica sempre bem empregar palavras que estejam momentaneamente na moda: postura, vertente, sinergias, contratualização, contexto,
problemática, etc. Para a campanha das autárquicas, a palavra
regionalização é imprescindível, e se o candidato sugerir a certa altura uma
guerrazita Norte-Sul, é bem possível que recolha fartos aplausos. Noutros
casos, convém não esquecer a interioridade, a macrocefalia, a ditadura do
Terreiro do Paço, etc. Para os candidatos mais distraídos, convém lembrar que
as forças de bloqueio já passaram à história. A não ser que o Tribunal Constitucional entre nessas contas...
É duvidoso que seja conveniente introduzir um sinceramente a meio do discurso: é que, em relação às partes restantes, os
ouvintes poderão suspeitar da sinceridade do orador. Uma coisa há, todavia, que
não é de todo aconselhável: é a utilização da preposição “de” a
despropósito. Se o candidato a orador disser eu penso de que, fica logo exposto a dichotes. E não há necessidade.
GUIA PRÁTICO DE DISCURSOS
Coluna 1 |
Coluna 2 |
Coluna 3 |
Coluna 4 |
Minhas senhoras
e meus senhores
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o cumprimento
das linhas do programa
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obriga-nos a
uma análise
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das condições
financeiras e administrativas existentes
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Por outro lado
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a complexidade
dos estudos efectuados pelos dirigentes
|
cumpre um papel
fundamental na formação
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das directrizes
de desenvolvimento para o futuro
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Apesar disso
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o aumento
constante, em qualidade e quantidade, e a extensão da nossa actividade
|
exige a
precisão e a determinação
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do sistema de
participação geral
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No entanto, não
nos esqueçamos que
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a estrutura
actual da organização
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ajuda a
preparação
e a realização
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das atitudes
dos membros das organizações para com os seus deveres
|
De igual modo
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o novo modelo
de actividade da organização
|
garante a
participação de um grupo importante na concretização
|
das novas
propostas
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A prática do
quotidiano
demonstra que
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o
desenvolvimento contínuo das diversas formas de actividade
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cumpre deveres
importantes na realização
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das acções de
formação tendentes ao progresso
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Não se torna
indispensável realçar o peso e o significado destes problemas, já que
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a nossa
constante actividade de informação e propaganda
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facilita a
criação
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dos sistemas de
formação de quadros que correspondam às necessidades
|
As experiências
ricas e
diversas
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o reforço e o
desenvolvimento das estruturas
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impede a
apreciação da importância
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das condições
indispensáveis ao exercício das actividades programadas
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O trabalho de
organização, mas sobretudo
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a consulta aos
numerosos
militantes
|
oferece uma
prova interessante de verificação
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dos modelos de
desenvolvimento
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Os elevados princípios
políticos, assim como
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o início da
acção geral de formação de atitudes
|
implica o
processo de reestruturação e de modernização
|
das formas de
acção
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