terça-feira, 12 de outubro de 2010

A última carta

Meu querido Amigo

Ontem à noite, quando o meu filho me telefonou de Portugal a anunciar-me o acontecimento, não chorei. Por momentos, fiquei surpreendido. Compreendi depois que nos havíamos despedido já, cinco dias antes. Recorda-se? A febre não o largava e eu estivera algum tempo a refrescar-lhe o rosto com uma toalha embebida em água fresca, renovada. E quando, finalmente, tive de partir, a lágrima que não pude reter e que lhe caiu na fronte ao beijá-lo, foi verdadeiramente o nosso último abraço. Ao chegar a casa, havia dito ao Paulo Miguel: Se na minha ausência acontecer o que receio, gostaria que me representasses na homenagem ao Padrinho... Concluo agora que se tratava de um entendimento premonitório do que iria passar-se. De resto, de há dois anos para cá, todos os dias nos íamos despedindo um pouco mais... Foi por tudo isto que não chorei ontem, compreende?

Queria dizer-lhe que não me esqueci do seu pedido: revi Paris pelo meu Amigo. Na Tour Eiffel, no Sacré-Coeur e, sobretudo, na nova Tour de Montparnasse (que não chegou a conhecer), tenho enchido os olhos da cidade que lhe era tão querida, em sua memória. Como poderia ser doutro modo? Se não fosse o meu Amigo, eu não estaria hoje aqui. Quanta água correu no Tejo desde que nos conhecemos na Chamusca há mais de trinta anos!... Foi bom termo-nos encontrado na Vida. Pena foi que agora, no Fim, estivéssemos tão distantes. Caprichos do destino.

Sinto que um ciclo da minha vida se encerrou ontem. Outro começa hoje: o de o guardar no coração, até ao dia em que for fazer-lhe companhia de novo.

Tomei boa nota da informação que o seu sobrinho José me deu: Secção 34, Número 2818, Cemitério do Lumiar. No próximo mês, levar-lhe-ei flores.

Até sempre, querido Amigo Carmo!
Eduardo

Paris, 20 de Setembro de 1982.


Artigo publicado em Novembro de 1982 na revista Chamusca Ilustrada.

4 comentários:

  1. Caro Amigo
    lembro-me de ter lido esta carta no original. Relida agora foi como se nunca a tivesse lido. Por razões que não têm a ver com a escrita mas com os sentimentos.
    Na altura em que a li era tão jovem que nem sabia que se escreviam cartas de despedida.
    Fez bem regressar á escita. Espero que este blog não viva só do que escreveu e proporcione aos amigos e familiares o prazer da leitura de assuntos mais actuais para as quais sabemos ter uma opinião que merece ser levada em conta.
    Um abraço do seu admirador
    Joaquim Emidio

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  2. Obrigado, Amigo, pelas suas palavras de incentivo.
    Um abraço,
    EdMar

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  3. Compreendo-te.
    Ainda hoje este texto mexe comigo.
    Beijinho

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