A 6 de Janeiro de 1952, Carlos Pereira Amaral Neto escrevia de Lisboa a alguém que se encontrava na Chamusca, nos seguintes termos:
É a si e não a mim que os velhos do Asilo têm que render agradecimentos. Ignorava de que indumentária dispunham, e se o meu Amigo se não tem referido à exclusiva andaina de algodão dentro da qual teriam de aguardar o Inverno, eu talvez me não tivesse lembrado de protegê-los contra o frio que agora aí fui conhecer e de que já me não lembrava. ( ...) Sei que continua, como sempre, a ocupar-se de causas de interesse para aumento dos rendimentos da Santa Casa, e admiro o seu espírito de sacrifício e de trabalho hoje tão raros. Que todos lhe façam a justiça que merece são os meus votos.
A carta era dirigida a António Dores do Carmo, a exercer então o cargo de chefe da secção de finanças do nosso concelho, um homem que, não tendo nascido na Chamusca, a esta terra dedicou o melhor de si mesmo numa acção esforçada e multifacetada de bem-fazer. Embora a memória dos homens seja demasiadas vezes curta e nem sempre grata, inúmeros são os chamusquenses vivos que reconhecerão a justeza da apreciação de Carlos Pereira Amaral Neto, a qual poderia ser testemunhada por pessoas das mais diversas condições sociais.
Por mais nove meses haveria de continuar António Dores do Carmo na Chamusca, donde saiu em Setembro de 1952 para ser colocado em Coruche, findo o sexénio fixado por lei para o exercício das suas funções como secretário de finanças. Durante este período, talvez mais do que em qualquer outro dos três que passou na Chamusca, desdobrou-se numa actividade particularmente intensa como membro da Comissão Administrativa que ao tempo geria a Santa Casa da Misericórdia. Sentia porventura, como aliás veio a acontecer, que essa seria a sua última oportunidade de se dedicar, de forma interveniente e consequente, à causa que sempre o animou na sua acção: a causa dos chamusquenses desvalidos, especialmente os idosos, os doentes e a chamada “pobreza envergonhada”.
O seu empenhamento generoso levava-o a bater-se em várias frentes: era a preocupação em robustecer os meios materiais da Santa Casa da Misericórdia, com vista a conseguir-lhe uma capacidade de actuação acrescida, para o que não se cansava de solicitar a participação dos mais abastados; era o cuidado que devotava ao melhoramento das instalações do Hospital e ao seu mais eficaz funcionamento; era o extremo carinho que dedicava ao Asilo, onde chegava a deslocar-se diariamente; era a organização de festas taurinas, com toda a carga de responsabilidade decorrente das incertezas próprias deste género de empreendimentos; era a coordenação dos esforços que levaram a bom termo os festejos da Comissão de Auxílio aos Tuberculosos; finalmente, era o apoio moral e material dispensado a tantos chamusquenses, por vezes incentivando a criação de grupos de pessoas amigas para intervenções pontuais, muitas vezes agindo individualmente de forma anónima.
Compreende-se assim o teor de uma outra missiva remetida ainda por Carlos Pereira Amaral Neto, a 26 de Janeiro de 1952. Depois de lamentar não poder deslocar-se à Chamusca, por razões de saúde, acrescentava: Queria abraçá-lo e agradecer-lhe, como chamusquense, o notável esforço por si orientado no sentido do sucesso que temos o gosto de presenciar. De todos os agradecimentos é merecedor e isso me apresso a manifestar-lhe. Perante êxitos tão próximos e repetidos, perante a eloquente demonstração de acordar do sentimento das generosidades que mês a mês o Mensário da Santa Casa vem revelando, nenhuma dúvida pode restar de que conseguirá tudo quanto se pretende. É a si, na sua maior parte, que tudo se ficará devendo. Muito e muito obrigado.
Consciente da falta que homens da estirpe de António Dores do Carmo fazem a qualquer comunidade, tanto mais que, sem renunciar aos seus princípios, cultivava a conciliação e conseguia ser um ponto de convergência de boas vontades, alguém pretendeu que ele ficasse na Chamusca, oferecendo-lhe um lugar com remuneração superior à que usufruía como secretário de finanças. Tal oferta foi recusada de modo clarividente, por razões que radicavam no espírito de independência e na irrecusável verticalidade que sempre o caracterizaram. Profissional de inexcedível honestidade e de elevada competência, que muito prestigiou a função pública como funcionário da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos, António Dores do Carmo entendeu que o seu destino deveria cumprir-se na carreira que escolhera. Ao partir da Chamusca, com menos saúde e algumas dívidas, deixou atrás de si um lugar aberto, quiçá não preenchido até aos nossos dias.
Inteiramente justo, pois, que lhe rendamos a nossa homenagem, recortando-lhe o perfil e apontando-o aos vindouros como um exemplo de amor à terra com que identificou o seu coração.
António Dores do Carmo nasceu em Elvas, na freguesia de Salvador, a 5 de Setembro de 1897. Filho de Luciana Maria e de José do Carmo, ao tempo comandante do posto da Guarda Fiscal da delegação aduaneira de Elvas, foi o mais novo de três irmãos.
Pertencendo a uma família sem haveres, os seus estudos estariam condenados a limitar-se à instrução primária, se o professor José Mendes Raimundo Jr. não tivesse reparado nele e decidido explorar as qualidades de inteligência e de trabalho que desde cedo começou a revelar. E foi assim que, entre o desempenho de tarefas avulsas como a venda de jornais e o aluguer de almofadas na estação dos caminhos de ferro de Elvas e a ajuda que dava a seus pais no amanho de uma pequena terra de renda, António Dores do Carmo completou o curso geral dos liceus no Colégio Elvense como beneficiário de uma caixa filantrópica de auxílio a estudantes pobres. Enquanto isso, o seu carácter ia-se moldando na convivência de uma família modesta, mas forte de ânimo e honrada nos princípios.
Não tendo podido cursar direito aduaneiro, como pretendeu a dado passo, António Dores do Carmo iniciou em 1919 a sua carreira nas «finanças». Após uma brevíssima passagem por Portalegre como praticante, a 19 de Maio desse ano tomou posse do lugar de aspirante de finanças da Chamusca, onde iria permanecer oito anos.
Com 22 anos apenas, desconhecido de todos e com a agravante de o lugar que ocupava não ter sido prestigiado pelos seus dois antecessores, foi pela seriedade da conduta, lhaneza do trato e espírito de iniciativa que António Dores do Carmo começou a ser apreciado na Chamusca, embora na fase inicial do relacionamento com o meio social chamusquense tivesse sido apoiado por Diamantino Montarroio Neto Ferreira, que desempenhara as funções de chefe da secção de finanças local. Data dessa época a polémica questão da passagem de novo da freguesia de Vale de Cavalos para o concelho da Chamusca, em que António Dores do Carmo teve uma participação activa. Também nesse período, em 1922 exactamente, conheceu aquela que viria a ser a sua companheira de sempre, Albertina de Jesus Neto, cujos relevantes serviços prestados à Chamusca, como chefe da estação dos correios durante cerca de um quarto de século, é da mais elementar justiça lembrar aqui.
Promovido a secretário de finanças em 1927, começou por ser colocado na Direcção de Finanças de Santarém, mas a 3 de Março de 1928 estava de regresso à Chamusca. Para seu desgosto e tristeza dos chamusquenses, aí ficaria apenas por dois anos e meio, dado que entretanto a repartição de finanças do nosso concelho subira à categoria de 2ª classe. Apesar de curto, este período foi bastante significativo. Na plena posse das suas faculdades, figura respeitada que havia sabido merecer o prestígio de que gozava entre os chamusquenses, António Dores do Carmo teve então uma actuação marcante, nomeadamente como vogal da Mesa da Santa Casa da Misericórdia. Nessa qualidade, entre outras incumbências, teve a seu cargo o pelouro da Praça de Touros; foi um dos promotores da construção de um pavilhão para tuberculosos no Hospital; participou na organização e colaborou activamente nas animadíssimas Festas da Misericórdia que tiveram lugar de 5 a 13 de Julho de 1930 e cujo lucro atingiu a cifra de 29 contos. Não foi sem mágoa que os chamusquenses o viram partir em Agosto de 1930. Em artigo publicado na Chamusca Nova, em Abril desse ano, Álvaro Amaral Neto interpretou sentidamente esse pesar.
Depois de ter passado sucessivamente por Santarém (desta vez como subchefe da repartição de finanças concelhia), Ferreira do Zêzere e Alpiarça, em 1941 completou com sucesso as provas de concurso para secretário de finanças de 2ª classe. Já podia de novo ser colocado na Chamusca! Até o conseguir, porém, haviam de decorrer ainda cinco anos, durante os quais exerceu funções em Silves e Coruche.
Foi a 12 de Agosto de 1946 que António Dores do Carmo regressou à Chamusca pela terceira vez, aí permanecendo o intervalo de tempo máximo permitido por lei. Como referimos antes, este foi talvez o período em que mais vigorosamente se envolveu nas múltiplas tarefas sociais em que já dera sobejas provas de empenhamento, especialmente no âmbito da acção da Santa Casa da Misericórdia.
Grande aficcionado, alegrou enormemente a nossa praça de touros promovendo corridas que deram brado, para as quais contratava as maiores figuras do toureio. Não poucas vezes, fez preceder as corridas que organizou de entusiasmantes entradas de touros, Rua Direita acima. Quem fará ideia do trabalho que tudo isto dá? Talvez um homem com o passado de Alberto Frederico Empis, que, a 21 de Julho de 1950, lhe escrevia uma extensa carta de agradecimento pelo convite formulado para estar presente a 3 de Agosto na festa de aniversário da praça de touros, dizendo já perto do final: Aproveito esta ocasião para lhe remeter em separado alguns programas antigos e uma medalha comemorativa da inauguração da Praça, que estou certo lhe dará prazer e mais do que qualquer outra pessoa a ela tem direito. As últimas festas taurinas que organizou foram a corrida de Quinta-Feira de Ascensão de 1952, a 22 de Maio, e uma vacada a 6 de Julho, que renderam cerca de 21 contos.
Em 1950 dinamizou uma iniciativa que teve, entre outros, o grande mérito de se transformar numa singular manifestação colectiva de solidariedade humana: a Comissão de Auxílio aos Tuberculosos. Tendo António Dores do Carmo como timoneiro, esta Comissão, para atingir os seus propósitos, organizou festejos esplendorosos que ainda estarão na memória de muitos chamusquenses. De Julho a Setembro de 1950 e de Junho a Setembro de 1951, ao longo de 32 trabalhosas noites, foi possível arrecadar um lucro da ordem de 148 contos, dos quais 126 em dinheiro e 22 em materiais e utensílios. Como se lia numa circular da CAT datada de 15 de Maio de 1951, pretendia-se com esses meios ( ...) minorar o sofrimento e curar os flagelados pela terrível doença a tuberculose, adquirindo remédios e promovendo a instalação nesta vila duma obra perdurável destinada a combater esta doença, com carácter permanente (...).
Pena foi que alguns dos objectivos perseguidos por António Dores do Carmo não tivessem podido ser alcançados. De entre estes, talvez sejam de salientar a “sopa dos pobres” (que teve uma vida efémera), o Dispensário Anti-Tuberculoso (a que fazia referência a circular mencionada acima), uma creche onde os trabalhadores pudessem deixar os seus filhos e um centro de acolhimento em Lisboa para doentes chamusquenses, preocupações que acompanharam António Dores do Carmo mesmo depois de ter saído da Chamusca pela última vez.
Repare-se que, exceptuando Silves, todas as localidades onde exerceu funções se situam no Ribatejo. Isto não aconteceu por acaso. Desde o primeiro contacto com a nossa terra, a trajectória futura de António Dores do Carmo ficou condicionada: a Chamusca passou a constituir para ele um pólo de atracção em torno do qual gravitava. Esta situação manteve-se até 1955, ano em que foi colocado no 5.º bairro fiscal de Lisboa. Aqui permaneceria até atingir a reforma em 1961.
Nesse mesmo ano, fundou uma agência de contribuintes em pleno centro da capital, na qual empregava dois secretários de finanças igualmente aposentados. Foram suas avençadas, entre várias outras, empresas importantes como Electricidade de Portugal, Estabelecimentos Isidoro de Oliveira, Claras Transportes. Deixou de exercer a actividade de consultoria fiscal há poucos meses, concretamente em Outubro de 1980.
Apesar de afastado fisicamente da Chamusca há já quase trinta anos, nunca deixou de ir acompanhando os problemas locais, de ir contribuindo para a resolução de certas carências, de se associar a manifestações de chamusquenses. São chamusquenses muitos dos seus melhores amigos. Quando com ele conversamos, é da Chamusca que se fala a maior parte do tempo.
Um episódio ocorrido com António Dores do Carmo, presumivelmente nos primeiros anos da década de 40, é esclarecedor do seu apego à nossa terra. Um dia, convidado por Leal Marques para ocupar um lugar na Inspecção-Geral de Finanças, respondeu com veemência: Prefiro ser secretário de finanças de 2.ª classe na Chamusca, a ser ministro!
Hoje, a caminho dos 84 anos, António Dores do Carmo pode legitimamente orgulhar-se de ser um grande chamusquense.
Artigo publicado em Fevereiro de 1981 na revista Chamusca Ilustrada.
Eduardo Martinho, li o seu blogue devido a certos eventos que me trouxeram memórias do passado. O sr. António Dores do Carmo teve filhos e filhas? Aprendeu com ele a ser um bom samaritano, creio. Lembro-me de me ter levado à sepultura dele, no Lumiar, em 1982, creio. Lembro ter comprado um vasinho branco com uma planta verde que me disse, mais tarde, ter secado. Por vezes questiono-me se a Maria do Carmo que sou, tem do Carmo como apelido ou se será o nome próprio. Divagações … ou o ser do Carmo lhe tenha feito lembrar esse homem que tanto fez por si. Deu-lhe o exemplo que, tenho a certeza, prosseguiu. Está bem de saúde?
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