Meu caro amigo
Como sabes, estou a passar férias em Santa Cruz, este ano “praia da CEE”! Para aqui vim há 23 anos com a família, ainda não era nascida a Isabel, e por cá fiquei. Hoje, que decidi escrever-te, dei comigo a pensar: Como isto mudou! Não me perguntes se é melhor ou pior. É diferente. A seta do tempo é irreversível e contra ela não se pode lutar, não é?
A pequena história do que por aqui se passou entretanto poderia começar assim:
Era uma vez uma povoação, a 15 quilómetros de Torres Vedras, em direcção ao mar: terra calma, de casario baixo e gente simpática...
Aí se vinha passar o tempo de Verão, recuperar forças. Cheirava a mar pela manhã na Meia-Laranja, a vista varrendo o extenso areal desde a Riba Amarela até para lá da Praia do Navio. Por detrás do Penedo do Guincho, adivinhava-se a Praia Formosa, que foi onde tudo começou, segundo dizem os mais velhos. As barracas, poucas, vinham até ao enfiamento das “rochas”, ou pouco mais. Na maré-baixa, os apanhadores de polvos faziam o sobe-e-desce nas grandes pedras semeadas na areia, avançando com decisão de toca em toca, de becheiro em punho. Para a Praia do Norte descia-se por uma escada de madeira, corrimão improvisado, toda ela tremendo à nossa passagem. Desembocava na tasca do Bigodes, cabana feita de tábuas e caniços, onde se comiam tremoços a acompanhar o tinto da região. Para os miúdos, havia pirolitos.
Era uma vez uma povoação calma...
A quietude e o silêncio dominavam. Podíamos encontrar-nos connosco próprios em qualquer momento, era só querermos. Não havia “boites”, nem jovens a gritar pelas ruas às três horas da madrugada à saída das discotecas. Não havia motoretas infernais, nem outros desassossegos. Nas noites mais amenas, dava-se uma volta, tomava-se um carioca de limão na Havaneza e conversava-se com os conhecidos, que eram todos. Regressava-se cedo a casa, com os grilos já em grandes cantorias, alguns atravessando pacatamente as ruas. Nos fins-de-semana, e pelo 15 de Agosto, tocava a Banda dos Bombeiros num coreto improvisado na praia, ou na rua da Estalagem, e havia bailaricos populares.
Era uma vez uma povoação de casario baixo...
Nesse tempo, não havia mamarrachos de vários andares, em pleno centro de Santa Cruz, estrangulando ruas e aniquilando casas típicas e vivendas (negócio que continua a florescer!). De todo o lado se via o mar. Hoje, só o entrevemos a espaços. O pôr-do-sol e a estrada de luz que deixava na água, vistos da Pensão Miramar, eram um deslumbramento sempre renovado. Agora, é um desalento, só comparável ao do terraço de onde não se “mira” mais do que a empena de um prédio a ele encostado! Quanto à Pensão Oceano, que se alongava pelas escadas que iam dar ao Casino, deixaram-na apodrecer e acabaram por desmoroná-la. Em seu lugar vão crescendo ervas no interior do espaço protegido por tapumes. Até quando? E que irão lá construir?
Era uma vez uma povoação de gente simpática...
Recordo a tia Angelina das pevides, a bonomia no rosto engelhado, palmilhando a areia a custo. Cedo deixou de aparecer, coitada, que os anos já pesavam.
Lembro-me da mulher das farturas, baixa e forte, que nos procurava a horas certas. Assente o cesto no chão, logo a miudagem se juntava à volta do seu sorriso familiar. Para os que não podiam comprar, havia sempre um bocado de frito. É pr’ó miúdo não augar, dizia ela.
Há banana a seis a dúzia!, ouvia-se, vinha ela ainda longe. Voz estridente e passo cadenciado, passava ao fundo das filas, do lado do mar, olhando na direcção certa à procura do sinal dos clientes. Nessa altura, não tinha ainda a venda no mercado novo, nem as bananas eram a 200 escudos o quilo. Como os anos passam depressa!
Quem não conhecia a Romana? Na pequena papelaria, onde hoje é o ArDeBar, havia de tudo, ou quase... e, sobretudo, uma simpatia humana enorme (como ainda hoje, felizmente, agora em frente da Boutique 81). No meio da venda dos jornais, o Zé Alfredo conta(va) histórias de pesca... Oh amigo, olhe que você aqui não consegue apanhar peixe. Com um anzol desse tamanho, só se for para os Açores, para a pesca da baleia!
Gente simpática a do Oeste, e confiante. Os pequenos comerciantes, mesmo sem nos conhecer, não hesitavam: Não tenho troco de cem. Paga depois.
Ainda hoje me impressiona a filosofia do vendedor de fim-de-semana a quem eu queria comprar um chapéu de Sol. Guarde-mo, que eu vou buscar dinheiro, pedi-lhe. Leve o chapéu, senhor. Paga quando por cá passar, disse-me o homem. Perante a minha surpresa, insistiu: Leve o chapéu! Se não aparecer para pagar? Olhe, o senhor não fica mais rico... e eu não fico mais pobre...
O postal vai chegando ao fim, meu caro. Assinalo apenas que Santa Cruz tem sido, ao longo do tempo, terra querida de gente ilustre, como foi o caso de João de Barros (1881-1960). No monumento que erigiram em sua memória, pode ler-se esta bela homenagem de Ferreira de Castro: «No Verão um grande poeta vinha contemplar o Atlântico de sobre estas arribas. Dedicara a vida a unir ainda mais a alma de Portugal à do Brasil, através do mar que ele amava desde menino. Na sua obra de esplendecente beleza cantava a liberdade e a fraternidade, as virtualidades do Homem e o futuro redimido de velhas servidões. Chamava-se João de Barros e foi também um preclaro cidadão, desses que honram eminentemente a espécie humana.»
Pena é que rareiem homens desta estirpe!
Até sempre.
Um abraço.
Artigo publicado em Agosto de 1988 no jornal O Mirante
Como sabes, estou a passar férias em Santa Cruz, este ano “praia da CEE”! Para aqui vim há 23 anos com a família, ainda não era nascida a Isabel, e por cá fiquei. Hoje, que decidi escrever-te, dei comigo a pensar: Como isto mudou! Não me perguntes se é melhor ou pior. É diferente. A seta do tempo é irreversível e contra ela não se pode lutar, não é?
A pequena história do que por aqui se passou entretanto poderia começar assim:
Era uma vez uma povoação, a 15 quilómetros de Torres Vedras, em direcção ao mar: terra calma, de casario baixo e gente simpática...
Aí se vinha passar o tempo de Verão, recuperar forças. Cheirava a mar pela manhã na Meia-Laranja, a vista varrendo o extenso areal desde a Riba Amarela até para lá da Praia do Navio. Por detrás do Penedo do Guincho, adivinhava-se a Praia Formosa, que foi onde tudo começou, segundo dizem os mais velhos. As barracas, poucas, vinham até ao enfiamento das “rochas”, ou pouco mais. Na maré-baixa, os apanhadores de polvos faziam o sobe-e-desce nas grandes pedras semeadas na areia, avançando com decisão de toca em toca, de becheiro em punho. Para a Praia do Norte descia-se por uma escada de madeira, corrimão improvisado, toda ela tremendo à nossa passagem. Desembocava na tasca do Bigodes, cabana feita de tábuas e caniços, onde se comiam tremoços a acompanhar o tinto da região. Para os miúdos, havia pirolitos.
Era uma vez uma povoação calma...
A quietude e o silêncio dominavam. Podíamos encontrar-nos connosco próprios em qualquer momento, era só querermos. Não havia “boites”, nem jovens a gritar pelas ruas às três horas da madrugada à saída das discotecas. Não havia motoretas infernais, nem outros desassossegos. Nas noites mais amenas, dava-se uma volta, tomava-se um carioca de limão na Havaneza e conversava-se com os conhecidos, que eram todos. Regressava-se cedo a casa, com os grilos já em grandes cantorias, alguns atravessando pacatamente as ruas. Nos fins-de-semana, e pelo 15 de Agosto, tocava a Banda dos Bombeiros num coreto improvisado na praia, ou na rua da Estalagem, e havia bailaricos populares.
Era uma vez uma povoação de casario baixo...
Nesse tempo, não havia mamarrachos de vários andares, em pleno centro de Santa Cruz, estrangulando ruas e aniquilando casas típicas e vivendas (negócio que continua a florescer!). De todo o lado se via o mar. Hoje, só o entrevemos a espaços. O pôr-do-sol e a estrada de luz que deixava na água, vistos da Pensão Miramar, eram um deslumbramento sempre renovado. Agora, é um desalento, só comparável ao do terraço de onde não se “mira” mais do que a empena de um prédio a ele encostado! Quanto à Pensão Oceano, que se alongava pelas escadas que iam dar ao Casino, deixaram-na apodrecer e acabaram por desmoroná-la. Em seu lugar vão crescendo ervas no interior do espaço protegido por tapumes. Até quando? E que irão lá construir?
Era uma vez uma povoação de gente simpática...
Recordo a tia Angelina das pevides, a bonomia no rosto engelhado, palmilhando a areia a custo. Cedo deixou de aparecer, coitada, que os anos já pesavam.
Lembro-me da mulher das farturas, baixa e forte, que nos procurava a horas certas. Assente o cesto no chão, logo a miudagem se juntava à volta do seu sorriso familiar. Para os que não podiam comprar, havia sempre um bocado de frito. É pr’ó miúdo não augar, dizia ela.
Há banana a seis a dúzia!, ouvia-se, vinha ela ainda longe. Voz estridente e passo cadenciado, passava ao fundo das filas, do lado do mar, olhando na direcção certa à procura do sinal dos clientes. Nessa altura, não tinha ainda a venda no mercado novo, nem as bananas eram a 200 escudos o quilo. Como os anos passam depressa!
Quem não conhecia a Romana? Na pequena papelaria, onde hoje é o ArDeBar, havia de tudo, ou quase... e, sobretudo, uma simpatia humana enorme (como ainda hoje, felizmente, agora em frente da Boutique 81). No meio da venda dos jornais, o Zé Alfredo conta(va) histórias de pesca... Oh amigo, olhe que você aqui não consegue apanhar peixe. Com um anzol desse tamanho, só se for para os Açores, para a pesca da baleia!
Gente simpática a do Oeste, e confiante. Os pequenos comerciantes, mesmo sem nos conhecer, não hesitavam: Não tenho troco de cem. Paga depois.
Ainda hoje me impressiona a filosofia do vendedor de fim-de-semana a quem eu queria comprar um chapéu de Sol. Guarde-mo, que eu vou buscar dinheiro, pedi-lhe. Leve o chapéu, senhor. Paga quando por cá passar, disse-me o homem. Perante a minha surpresa, insistiu: Leve o chapéu! Se não aparecer para pagar? Olhe, o senhor não fica mais rico... e eu não fico mais pobre...
O postal vai chegando ao fim, meu caro. Assinalo apenas que Santa Cruz tem sido, ao longo do tempo, terra querida de gente ilustre, como foi o caso de João de Barros (1881-1960). No monumento que erigiram em sua memória, pode ler-se esta bela homenagem de Ferreira de Castro: «No Verão um grande poeta vinha contemplar o Atlântico de sobre estas arribas. Dedicara a vida a unir ainda mais a alma de Portugal à do Brasil, através do mar que ele amava desde menino. Na sua obra de esplendecente beleza cantava a liberdade e a fraternidade, as virtualidades do Homem e o futuro redimido de velhas servidões. Chamava-se João de Barros e foi também um preclaro cidadão, desses que honram eminentemente a espécie humana.»
Pena é que rareiem homens desta estirpe!
Até sempre.
Um abraço.
Artigo publicado em Agosto de 1988 no jornal O Mirante
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