segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Percurso pessoal visto de relance

Andamos todos em busca de um bocadinho mais de eternidade escreveu um dia a minha filha Maria Teresa no seu blogue http://tempodeteia.blogspot.com/. Em consequência, continuava ela, escrevem-se livros, pintam-se quadros, fazem-se filhos, fazem-se blogues. É isso: este blogue é ditado por um secreto desejo de eternidade para todos os que nele entram...

Nasci na Chamusca em 16 de Novembro de 1936, filho único de uma família humilde. Quando acabei a escola primária (actual 1.º ciclo) em Julho de 1946, a preocupação dos meus Pais era tirar-me da rua, para não apanhar vícios… Estive quase a ir aprender um ofício (carpinteiro, foi a hipótese), mas o mestre não me aceitou porque eu era demasiado novo.

Completados os 10 anos, fui posto num armazém de revenda para (um dia) trabalhar no escritório. Primeiro foi o tédio de me ver sozinho, isolado, sentado a uma secretária, a conferir inutilmente as somas (sempre certas!) de inúmeras facturas de vendas a retalho. Felizmente, passado algum tempo fui “promovido” a marçano... Era divertido encontrar pessoas conhecidas ao balcão, enrolar cartuchos de papel pardo, aviar quar­tas de arroz ou de massa, cortar bacalhau às postas, ajudar na torrefacção do café e do amendoim... Menos agradável eram os carregos e ter de varrer a loja ao fim do dia.


A minha Mãe, que era uma Mulher inteligente, tinha outras ideias para mim. Em meados de 1948, decidiu ir pedir ajuda ao Senhor António Dores do Carmo, chefe da Repartição de Finanças da Chamusca, que era uma pessoa considerada e influente no meio. Perante os argumentos de minha Mãe, o Senhor Carmo acabou por aceitar-me como uma espécie de moço de recados, ficando de ver o que poderia fazer para eu frequentar o externato que havia na vila – onde, quem tinha posses, podia fazer os dois primeiros anos do liceu. Foi o início de um muito improvável percurso…

 Sempre sob a protecção e orientação do Senhor Carmo, em 1949 fiz o exame de admissão ao liceu e em 1951 completei o 2.º ano (actual 6.º ano). Já a residir em Santarém e beneficiando de uma bolsa de estudo no Externato Braamcamp Freire, completei o 5.º ano (actual 9.º ano) em 1954 e o 7.º ano (actual 11.º ano) em 1956. Em 1961, concluí a licenciatura em Ciências Físico-Químicas na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, e iniciei a minha actividade na Junta de Energia Nuclear (Sacavém).

Na minha adolescência, imaginava que um dia escreveria em jornais e seria “famoso”. Escrever artigos, escrevi, quanto ao resto fiquei mais conhecido na minha “rua” pelo que escrevi na revista Chamusca Ilustrada (1977-1983) e no jornal O Mirante (1987-2001), e talvez um pouco mais além pelos artigos publicados no Expresso e no Público na década de 90, sobretudo os respeitantes a uma crise delicada que levou o Presi­dente da República, doutor Mário Soares, a receber um grupo de investigadores do Labora­tório de Sacavém em Maio de 1993 – cf. http://edmartinho01.wordpress.com/.


Em Santarém, era eu estudante do ensino secundário, tive o privilégio de pertencer à equipa de futebol de juniores da Associação Académica. Esse grupo venceu os campeo­natos Regional e Distrital, e foi ao Nacional em 1955/56, com direito a pequenos relatos nos jornais da região e até a uma fotografia no Mundo Desportivo... Um dos aconteci­mentos mais entusiasmantes foi quando o senhor Madeira me chamou à parte depois de um treino e, pela primeira vez, me disse: Martinho, você joga amanhã!


E também foi em Santarém que conheci em 1954 a Maria da Piedade Neves Pinheiro, que veio a ser a Mãe dos meus filhos (Paulo Miguel, Maria Teresa, Maria Helena e Maria Isabel) e Avó dos meus netos (Bruno, Hugo, João Guilherme e Inês).



Durante a licenciatura (1956-1961) fui aquilo que se designa por trabalhador-estudante: ganhava a vida no Colégio Manuel Bernardes – onde tomava conta de meni­nos de boas famílias... com direito a cama, comida e roupa lavada e uns “cobres” ao fim do mês – e frequentava as aulas da manhã na Faculdade de Ciências, porque no Colégio tinha só as manhãs livres e um domingo de folga de 15 em 15 dias. Dormia na camarata dos alunos, levantava-me às 6 horas da manhã, tomava as refeições com os alunos, vigiava o recreio, tirava dúvi­das nas salas de estudo... Em suma, foram cinco anos difíceis.

Antes de terminar licenciatura, tive dois convites de emprego: (1) como professor de Ciências Físico-Químicas do Colégio Manuel Bernardes e (2) como assistente de investigação do recém-inaugurado Laboratório de Física e Engenharia Nucleares (LFEN) que fazia parte da Junta de Energia Nuclear. Com a compreensão do director do Colégio, que me desobrigou do “sim” ao seu convite quando soube da segunda oportu­ni­dade, optei por trabalhar no LFEN, onde permaneci mais de 40 anos (desde Se­tembro de 1961 até me aposentar em Abril de 2002).

Entre os marcos profissionais que vivi mais intensamente no início da minha carreira contam-se os seguintes:
(a) Início da actividade na Junta de Energia Nuclear (Setembro de 1961);
(b) Conclusão do Cours de Génie Atomique (Saclay, França) em Julho de 1963;
(c) Trabalho publicado em França com René Vidal [Mesures des intégrales de résonance d'absorption (Mn, Fe, Co, Ni, Cu, Zr, Mo). Rapport CEA-R-2840 (1965)];
(d) Primeiro artigo publicado numa revista internacional, com José Salgado (Diffusion and extrapolation lengths of thermal neutrons in water by a stationary method. Journal of Nuclear Energy, Vol. 22 (1968) 597);
(e) Artigos publicados com Maria Micaela Costa Paiva: (1) Half-life of Au-198. Interna­tional Journal of Applied Radiation and Isotopes, Vol.21 (1970) 40; (2) Thermal neutron diffusion parameters in water by the poisoning method. Nuclear Science and Engineering, Vol. 45 (1971) 308


Em 1965 fui admitido como assistente da Faculdade de Ciências da Universidade de Lis­boa, em regime de acumulação com a actividade no LFEN/JEN. O resumo do que foi a minha passagem pela FCUL está contido na intervenção do Professor Doutor José Gomes Ferreira (que não esqueço) em reunião do Conselho Científico (Grupo de Física) reali­zada em 22 de Outubro de 1980:
O Dr. Eduardo Martinho leccionou aproximadamente 15 anos no Laboratório de Fí­sica da Faculdade de Ciências de Lisboa. Durante este tempo regeu grande número de disciplinas onde revelou qualidades pedagógicas de grande mérito aliás reconhe­cidas pelos seus alunos.
Publicou livros de texto para a maioria das disciplinas que regeu e que foram segui­dos por outros docentes. Realça-se este facto porque é raro em Portugal os profes­sores universi­tários publicarem em livro as suas lições.
Realizou trabalhos de investigação com aceitação internacional.
Tendo eu sido responsável pela entrada do Dr. Martinho para a Faculdade, ficaria de mal com a minha consciência se, no momento em que, com desgosto, o vejo abandoná-la, não mani­festasse perante este Conselho Científico o apreço em que tenho as suas qualidades de docente e fizesse realçar o mérito indiscutível da cola­boração que deu a este Laboratório
.

Uma pergunta pode ocorrer: De entre os trabalhos científicos realizados, quais terão sido os mais significativos? Pela originalidade e importância prática dos resultados, julgo que são os que foram publicados entre 2001 e 2004 – com José Francisco Salgado e Isabel Maria Ferro Gonçalves – referentes à descoberta de uma curva universal relevante no domínio da Física das Radia­ções de Reactores Nucleares.


Desses trabalhos, são de destacar os seguintes:
(a) Universal curve of epithermal neutron resonance self-shielding factors in foils, wires and spheres. Applied Radiation and Isotopes, Vol. 58 (2003) 371-375
(b) Extension to cylindrical samples of the universal curve of resonance neutron self-shielding factors. Nuclear Instruments and Methods in Physics Research B, Vol. 213 (2004) 186-188
(c) Universal curve of thermal neutron self-shielding factors in foils, wires, spheres and cylinders. Journal of Radioanalytical and Nuclear Chemistry 261 (3) 2004 637-643

Cientistas de vários países [Alemanha, Argélia, Argentina, Áus­tria, Bélgica, Brasil, Bulgária, Canadá, China, Coreia do Sul, Dinamarca, Egipto, Eslovénia, Estados Unidos da América, França, Holanda, Hungria, Índia, Itália, Japão, Paquistão, Portugal, Reino Unido, Suiça, Taiwan e Vietname] e de instituições internacionais [EU/Joint Research Centre (Geel, Bél­gica; Petten, Holanda; Ispra, Itália) e IAEA (Viena)] têm vin­do a citar os tra­balhos publicados entre 2001 e 2004 em artigos referentes a diversos do­mí­nios, nomeadamente metrologia de radiações de reactores nucleares, determinação de parâme­tros nuclea­res (secções eficazes e integrais de resso­nância), aná­lise por activa­ção com neutrões, produção de radioisótopos para aplicações médicas.

Uma equipa canadiana resumiu a inovação do trabalho feito em Sacavém como segue:
« (…) Historically, the calculation of Gth and Gep [Gepi or Gres] was extremely difficult, and it was recommen­ded to dilute the samples to avoid self-shielding. Fortunately, reactor physicists recently showed that the amount of epithermal as well as thermal self-shielding could be expressed by the same analytical function, a sigmoid, for all nuclides (Martinho et al., 2003 [2]; Gonçalves et al., 2004 [3]; Martinho et al., 2004 [4]). (…) »
[in C. Chilian, R. Chambon, G. Kennedy: Neutron self-shielding with k0-NAA irradiations. Nuclear Instruments and Methods in Physics Research Section A 622 (2) (2010) 429-432]

Os trabalhos publicados entre 2001 e 2004 encontram-se reunidos no website http://edmartinho.wordpress.com/ intitulado “Neutron Self-Shielding”.

Por fim, deixo aqui registada uma inesperada “declaração de amor” da minha neta Inês (em Ou­tubro de 2009; cinco anos incompletos) que me assegura a “eternidade” possível no seu coração: Avô, tu estás velhinho, mas o mais impor­tante é que eu gosto muito de ti. Tens razão, Inês, isso é o mais importante!

4 comentários:

  1. Caro (...) edmartinho

    Peço desculpa, mas hesitei na forma de o tratar. Ia a começar só por edmartinho, depois fiquei com dúvidas (mas porquê, poder-se-á questionar?), quando eu nasci já o Edmartinho tinha 11 anos (que até nem é nada por aí além...).
    Gostei da simplicidade do estilo das suas recordações, da riqueza fabulosa do seu percurso de vida. E pus-me a pensar nas dificuldades daqueles anos 30 (segundo ouvi mais tarde dizer), dos anos 40, que já vivi e por aí adiante.

    Dou-lhe os parabéns pela família que tão carinhosamente refere. A Teresa tenho-a acompanhado pelos blogues. Encantado com o seu entusiasmo e talento que demonstra.

    Mas não me vou alongar. Nem sei mesmo se não me estou a tornar impertinente. De qualquer modo também estou a fazer pela vida «eterna», se possível!

    Desejo-lhe tudo do melhor e que goste destes ares blogosféricos. Quem sabe se não poderemos vir a encontrar-nos por aqui até que a «Energia Nuclear» ou lá o que seja nos permita.

    Os meus cumprimentos...

    António N

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  2. Caro edmartinho
    Pela mão da Teresa, tenho o prazer de o conhecer pessoalmente, o que é uma honra perante o seu brilhante percurso.
    Um bocadinho mais de eternidade? Sim: Como avó, recebi um bocadinho mais sempre que os meus netos me fizeram declarações de amor. E ainda recebo :)
    Permita-me um abraço.

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  3. Muito obrigado IC e as-nunes pela gentileza dos vossos comentários.
    Um abraço para ambos

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  4. Eu venho só espreitar e deixar beijokas... :)
    O resto já sabes...

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