terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Pontos de vista ou a esfera bicolor

Numa manhã de Maio de 1974, preparava-me eu para sair de casa para ir trabalhar, recebi um telefonema. Um membro da Associação de Pais da Escola Preparatória Luís António Verney (Lisboa), a que eu pertencia, porque os meus filhos mais velhos a frequentavam, pedia-me para comparecer. “Venha depressa. O ambiente está agitado. Os alunos estão em greve!”.

A minha primeira reacção foi de surpresa. Miúdos em greve?! Pensei que haveria ali algum exagero. Nos dias conturbados que se seguiram ao reencontro de Portugal com a democracia, havia agitação na Universidade e nas escolas secundárias, mas não constava que o movimento se tivesse estendido às escolas preparatórias. Assim, foi com expectativa que meti os pés a caminho do bairro da Madre de Deus.

Quando lá cheguei, era grande a confusão... e a greve uma realidade. Havia movimento e vozearia, alunos excitados que discutiam em grupos, pais atónitos que não percebiam o que se estava a passar, outros que ofereciam tabefes aos filhos perante aquela rebeldia inesperada, professores que procuravam acalmar os ânimos, membros da Associação de Pais que tentavam ajudar os professores a organizar o caos.

E foi assim que me vi metido numa sala de aula, sentado à secretária do professor, tendo na frente uma trintena de jovens com idades à volta dos 12 anos. Havia-se combinado antes que se fariam primeiro reuniões parcelares, a nível de turma, para conhecer e debater as razões de queixa dos alunos. A seguir, haveria uma reunião geral no ginásio, onde se procuraria identificar os problemas mais prementes, como primeiro passo para (tentar) solucioná-los.

Iniciado o debate na sala de aula, cedo me apercebi que a tarefa não ia ser fácil. De facto, a experiência da vida mostra que o diálogo, em geral, é um exercício complicado. Não poucas vezes, um diálogo transforma-se num somatório de monólogos..., situação que equivale ao chamado diálogo de surdos. Para comunicar, é necessário acertar os códigos de linguagem, assegurar que não estão uns a falar em alhos e outros em bugalhos. Para comunicar, é necessário saber ouvir, importa fazer um esforço no sentido de compreender o ponto de vista do outro. Em suma, comunicar é uma tarefa que exige uma atitude de generosidade e humildade, o que é difícil. Se a isto se juntar um clima de contestação, opondo pessoas de gerações muito diferentes, pode-se imaginar o aperto em que me vi metido.

Foi então que tive uma ideia salvadora. Pedi aos jovens uns minutos de atenção, para lhes propor um enigma semelhante ao que estávamos a viver, em que, animados de boa vontade, dizíamos coisas uns aos outros mas não conseguíamos entender-nos. Julgando talvez que ia contar-lhes uma história, fez-se silêncio. “Imaginem que em cima da secretária está uma esfera grande e suponham que, em verdade, eu digo que a esfera é verde e vocês afirmam que a esfera é vermelha. Como explicar isto?”

Apanhados de surpresa, ficaram a pensar no assunto. Então, a pouco e pouco, fui encaminhando-os para a solução do problema. Levei-os a compreender que, se trocássemos de posição, eles poderiam observar o que eu via e eu poderia observar o que eles viam. E concluiríamos que, afinal, a chave do enigma era simples: a esfera era bicolor! Embora o objecto fosse o mesmo, a perspectiva em relação a ele era diferente, portanto as afirmações eram diferentes. E, no entanto, ambas eram respeitáveis, porque honestas.

A rapaziada percebeu a mensagem. O ambiente modificou-se. O prazer do entendimento estabeleceu-se. Finalmente, o diálogo aconteceu. E eu nunca mais esqueci a esfera bicolor daquela manhã de Maio!






Crónica publicada no jornal O MIRANTE em 27.Abril.1993

Ilustrações:
http://www.museudapessoa.net (1.ª)
http://vaninha-pedagogia.blogspot.com (3.ª)

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