quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

No tempo da Carolina...

Há, na vida de todos nós, rituais e pessoas que, sem conseguirmos explicar porquê, nos são tão importantes que lhes reservamos um lugar apesar da separação, da distância, da morte...

A Carolina era aquela senhora de cabelo grisalho e sorriso simpático que ajudava a Mãe nas limpezas. Era também uma companheira de sonhos e aventuras quando os pais se ausentavam. Nesses momentos a Carolina não tinha descanso. Éramos quatro a desafiá-la, à porta da cozinha, para que largasse o alguidar da louça. Por vezes éramos nós que acabávamos a passar pratos e copos, junto ao alguidar enorme, cheio de água. E assim, com as mãos quentinhas, conversávamos longamente com a Carolina...

Noutros dias éramos índios e morávamos numa cabana, na varanda. Um cobertor entalado entre a janela do quarto e o parapeito da varanda servia de toldo. E ali ficávamos em aventuras pelo quarto e recolhendo-nos para as refeições trazidas pela Carolina. Até a salada de fruta era mágica... e mágicos eram os momentos em que a Carolina se transformava em cavalo índio, companheiro de aventuras.

Em dias mais calmos, a Carolina deixava a louça esperar por momentos... assim que ouvia: "Já está!". E então era prender a respiração e esperar que o nosso esconderijo fosse o melhor...

A Carolina morava na praceta. A mesma praceta da nossa casa. Mas a casa dela não era como as outras. Era como a Carolina... cheia de surpresas e coisas especiais. A magia começava cá fora. Aquele recanto dos brincos-de-princesa era a porta para um mundo diferente. E lá dentro havia de tudo... até uma barbearia de enormes cadeiras de recosto, de um verde apagado, onde víamos passar os homens da terra.

Umas estreitas escadas em madeira escura levavam-nos ao primeiro andar... O quarto das costuras será sempre para mim o quarto dos botões. Das caixas de papelão saiam dezenas deles... uma autêntica colecção que se espalhava no chão e entrava no jogo. Botões grandes e pequenos, rasos, curvos, rugosos e lisos, brilhantes... botões de todas as cores e formas... botões de madeira, veludo, latão, madrepérola... um desafio à imaginação e à invenção de toda a espécie de jogos. Nesse quarto passávamos tardes a brincar. Ali no chão, ao nosso lado, começava o vaivém do pedal da máquina antiga, onde a Carolina cosia. E aquele embalo vibrante do som, ora pára ora anda... fazia-nos perder a noção do tempo.

O quarto da Carolina tinha uma janela especial. Lá de cima dominávamos a praceta e o jardim. A janela contava todas as histórias boas e más que aconteciam na terra. Festas, procissões e carnavais desfilavam sem descobrir o nosso recanto secreto... a lama das cheias, os estragos, eram olhados de longe por trás do vidro...

E a janela erguia-se como um escudo protector quando os tempos eram maus e havia medo no ar.

E a Carolina estava lá, nesse tempo.

E ria e cantava e contava histórias.

E tudo voltava a ser bom.

Não era transparente... não voava... mas era a pessoa que eu conhecia mais parecida com uma fada...


Texto de homenagem (a uma pessoa especial) escrito por Helena Martinho
e publicado na revista Cadernos de Educação de Infância, n.º 13, 1990


ADENDA 1 – Depois de ter lido esta entrada, a minha filha Maria Helena enviou-me o seguinte e-mail: Gostei de reler o artigo... já nem me lembrava bem dele... ainda bem que o escrevi naquele momento. Acho que revela uma parte daquilo que nós quatro tivémos a sorte de viver na infância. Qual TV? qual computador? quais jogos comprados...? sem materiais ou quase só com o material "imaginação", palavras, e alguns botões... as coisas que nós vivíamos! Uma querida, a Carolina. Terá ganho a sua imortalidade na lembrança que ainda temos dela.

ADENDA 2 - E-mail recebido de Bruxelas enviado pela minha filha Maria Isabel: Está muito bonito. Não tenho todas estas recordações. Acho que era muito pequena. Guardo na lembrança breves momentos com a Carolina, em casa, no alguidar, a entrada da casa dela, por isso é óptimo ler o artigo da Lena que completa essas memórias da vida em Alverca.

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