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As bruxas têm sempre nos meus grupos um lugar muito especial. Elas são em geral velhas tontas que fazem coisas inconcebíveis, mas que apresentam ao mesmo tempo traços do quotidiano infantil. São simultaneamente figuras misteriosas e anedóticas... assustadoras e hilariantes. E é assim que, de meio para meio, as bruxas tomam aspectos diferentes e diferentes são os rituais e os espaços que nos ligam a elas. Assim, se numa aldeia da Beira Alta as bruxas moram em casas abandonadas, apanham míscaros, preparam a vianda dos porcos e bebem vinho, numa vila como Tábua outras coisas podem acontecer...
Havia no Jardim de Infância um canto revestido a tijoleira com um fogão a lenha bem preto e sugestivo. Era a casa da bruxa. Tínhamos já feito um grande chapéu bicudo em cartolina preta e a bruxa tinha também disfarces e adereços: um xaile, o lenço para a cabeça, o espelho mágico, uma cesta de maçãs, uma grande colher de pau e claro... lenha para o lume.
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Nessa casa, coisas mirabolantes aconteciam todos os dias. Faltava a vassoura mágica, importantíssima para os arrojados voos da bruxa pela sala... Foi assim que no dia da feira mensal partimos à procura de uma vassoura, daquelas mágicas. Não foi sem algum receio que o grupo se aproximou do senhor que vendia vassouras de milho painço. Decididamente, um velhote que vende vassouras voadoras, só pode ser um bruxo disfarçado... mas lá se fez a escolha e a compra foi feita. Claro que no regresso ao Jardim de Infância já iam três montados na vassoura. É verdade que de início, para alguns, foi de certo modo uma decepção verificarem que a vassoura não os levava realmente pelos ares, mas depois todos entraram na fantasia do jogo e a vassoura todos os dias voava nas nossas histórias.
A partir daí, nos nossos passeios pelo pinhal, aconteciam coisas misteriosas e divertidas... o barulho de um avião era a bruxa voando apressada na sua vassoura e o depósito da água passou a ser a casa da bruxa. Assim, sempre que aí passávamos havia batidelas na porta, perguntas e provocações feitas à bruxa, desafios sem resposta; a bruxa era muito dorminhoca.
Foi por essa altura que chegou a Tábua uma visita, a minha irmã Isabel, que por coincidência reunia na altura características típicas das nossas bruxas... vestida de negro, saia comprida, dois brincos numa orelha e um corte de cabelo que lhe deixava na nuca uma madeixa mais comprida. A juntar a isto... um sentido de humor muito especial.
De repente surgiu a ideia... A Isabel ia ser bruxa durante uma semana. Uma bruxa simpática e divertida que deixasse saudades em Tábua.
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Para dar credibilidade à situação, nada como fazê-la aparecer no pinhal. Foi assim que uma manhã deixei a Isabel de chapéu de cartolina e vassoura de milho painço no depósito da água, esperando a nossa visita. No passeio pelo pinhal o grupo sentou-se à sombra do depósito para lanchar e surgiram como habitualmente os desafios à bruxa... e a bruxa apareceu mesmo, com um grande sorriso. Desta vez não estava a dormir... O momento foi de emoção e silêncio, mas logo apareceram balões multicores que a bruxa ia dando enquanto explicava que viera de Lisboa na sua vassoura...
Um minuto depois choviam perguntas... «
Tu és mesmo uma bruxa?»... «
Vieste de Lisboa sempre a voar?»... «
Oh bruxa, nós lá na escola temos um chapéu e uma vassoura assim... não foste lá roubar dentro?»... «
Por que é que tens o sol e a lua nessa orelha?»... «
A tua vassoura voa mesmo? Voa lá um bocadinho...». A bruxa não tinha descanso e as respostas loucas que dava punham o grupo a rir. Contou peripécias da viagem, segredos de magias... e acabaram todos a fazer a dança das bruxas aos pulos pelo pinhal. Claro que à hora de almoço todos queriam levar a bruxa para casa, mas expliquei que ela era minha convidada especial e ia ficar uns dias comigo.
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Foi assim que começou a semana das bruxarias... Todos os dias a bruxa aparecia na escola e tudo rodava à volta dela, das histórias que ela contava, das danças e jogos que ensinava, das magias que fazia.
Até que uma das crianças se lembrou que eu já lhes falara de uma irmã chamada Isabel... «
Oh Lena, eu acho é que esta bruxa é a tua irmã de Lisboa.»
Deixei-os na dúvida... Com o tempo, e depois do regresso da bruxa a Lisboa, todos eles descobriram que o era realmente e, no entanto, a magia continuou. Quiseram escrever cartas à bruxinha Isabel e desenhar «retratos» dela. Mandaram uma cassette com as suas recordações e mensagens gravadas. Pediam-lhe constantemente que voltasse a Tábua.
E ainda hoje, dois anos depois, chegam cartas de Tábua com beijos para a bruxinha. Uma bruxa que aterrou em Tábua... um dia... por acaso.
Crónica de Maria Helena Pinheiro Martinho publicada
na revista Cadernos de Educação de Infância, N.º 8, 1988
NOTA
Relato de uma situação passada no ano lectivo de 1985/1986 no Jardim de Infância de Tábua (Coimbra).Ilustrações (pela ordem apresentada) encontradas em:
http://www.eb1-vale-remigio.rcts.pt/act.htm
http://www.imagensdeposito.com/casa/40544/casa+da+bruxas.html
http://dancaharah.blogspot.com/2009/10/dia-das-bruxasa-bruxa-do-dia.html
http://ebvpancora5a.blogspot.com/2010/10/vassoura-magica-da-maria.html
ADENDA via e-mail recebido de Bruxelas enviado pela minha filha Maria Isabel:
Esta história da bruxa foi super-cómica. Ainda me lembro de um dos miúdos mais malandros estar à frente do grupo a chamar pela bruxa e, quando apareci de surpresa, ficou com os olhos esbugalhados e desatou a correr a gritar que afinal havia mesmo uma bruxa. Quando vi o ar atrapalhado de alguns deles, comecei a distribuir rebuçados para que não ficassem dúvidas de que era uma bruxa boa. Tive que inventar uma história louca que a minha vassoura estava estragada e que tinha que a pôr a arranjar, pois eles queriam à força que eu voasse. Boas recordações :-)