Descobrindo a arte de Ursus Wherli
Artigo de Helena
Martinho publicado em
Cadernos de Educação de Infância N.º 100,
Setembro-Dezembro.2013
“Hoje vamos
receber um convidado muito especial. Ele é suíço e por isso não poderá estar
aqui connosco, mas mandou-nos esta foto sua e de vários trabalhos que tem feito
para vos mostrar…”
Foi assim que no auditório do Centro de Interpretação
da Batalha do Vimeiro se deu início a uma divertida e muito participada sessão
sobre Ursus Wherli. Este artista e comediante tem realizado um curioso trabalho
de reorganização de espaços e ambientes, objectos, pinturas, bandeiras,
elementos da natureza…As imagens dos seus trabalhos dizem (quase) tudo
sobre o conceito subjacente à chamada “art of clean-up”.
A sessão iniciou-se com a passagem de um powerpoint com imagens de vários
trabalhos de Ursus, antes e depois de organizados. Começámos por analisar a
figura do artista, a formalidade com que está vestido na foto projectada, de
fato completo e gravata …“como se fosse
para um casamento”, adianta um menino.
De seguida, expliquei-lhes que o Ursus é um artista, mas que é um
artista muito especial, pois gosta muito de organizar tudo à sua volta.
Surge uma primeira imagem: todos identificam uma caixa de areia com brinquedos
espalhados e um menino a brincar. Questiono as crianças sobre como poderiam
organizar “aquela confusão”. Surgem algumas sugestões das crianças. Na imagem
seguinte todos os brinquedos estão organizados em filas, por categorias. As
crianças analisam a organização realizada pelo artista e tentam contar quantos brinquedos
existem em cada fila, referindo o que está em maior e menor quantidade.
A imagem seguinte é uma fotografia aérea de um parque de estacionamento.
Imediatamente, as crianças tentam encontrar soluções para “arrumar” os carros
estacionados. Deixo-os avançar com várias hipóteses e só depois passo à imagem
seguinte. Algumas crianças confirmam que acertaram. Os veículos estão arrumados
por cores e as crianças vão descrevendo o que vêem, levantando-se e indo
apontar as diferentes filas.
Surge nova imagem: um ramo de pinheiro. Como já entraram no jogo, as
crianças começam logo a avançar ideias para organizar a imagem, algumas
revelando muita imaginação. Todas as ideias são valorizadas, o que as leva a
não terem receio de falar. Por vezes torna-se difícil gerir o tempo de cada um
e há que solicitar a intervenção dos que se mantêm mais silenciosos perante o
quase incontrolável entusiasmo de outros…
De repente uma foto de um céu estrelado… e de seguida as estrelas
alinhadas por tamanhos e brilhos. Um menino adianta, decidido: “Ele usou um truque de computador. Só assim é
que ele conseguia pôr aquelas estrelas todas organizadas!” E outro
acrescenta: «Pois… não era como nos
carros, que ele ia com a chave e podia conduzir e mudá-los de lugar!”
Um comentário curioso surge quando aparece uma foto de um letreiro
escrito em caligrafia asiática. Um menino apreciador de animação japonesa adora
este tipo de escrita e assume que aquela é uma palavra japonesa: “Ali diz Japão”. Nova imagem: Ursus não
resistiu a dissecar os vários tracinhos que compõem a palavra, alinhando-os por
formas e tamanhos. Lanço uma pergunta provocadora: «E agora, continua a dizer ali Japão?», e o mesmo menino comenta sem
hesitar: «O único que sabe que ali diz
Japão é o Ursus!».
Em seguida, surgem trabalhos baseados em pinturas de autores
consagrados. Uma obra de Paul Klee, composta por quadrados, depois organizados
por colunas de cores, foi rapidamente identificada pelo grupo porque a imagem
já fora usada numa actividade no âmbito da matemática. De novo compararam as
alturas das colunas e o número de quadrados em cada uma.
Numa imagem que reproduz uma obra de Malevich, as crianças reconhecem um
homem a cortar uma árvore e na imagem seguinte tentam encontrar as partes respectivas,
como se se tratasse de peças de um puzzle.
Numa profusa e híper-colorida obra de Keith Haring, que Ursus organiza
por colunas de cor, as crianças querem contar os pedacinhos de cada cor e voltam
atrás várias vezes para ver “se o Ursus
não se esqueceu de nenhum bocado!”
Quando surge a pintura do quarto de Van Gogh, uma
criança reconhece-a de um puzzle que há no Jardim. Ao observarem, na imagem
seguinte, a “organização” realizada pelo artista, as crianças acham que a
imagem está agora mais desarrumada… pois o artista colocou todo o mobiliário em
cima e debaixo da cama… supostamente para se iniciar uma limpeza ao quarto. Em
jeito de segredo um dos meninos comenta: «Ai,
se o Ursus fosse ver como estão os brinquedos no meu quarto, organizava logo
aquilo tudo!!!»
No final da apresentação e de muitos comentários divertidos e
perspicazes, explico que vão passar para outra sala: a sala da organização e do
silêncio.
O grupo desloca-se para uma sala onde já estão preparados os materiais
sobre os quais irão intervir. Distribuo as crianças pelos diferentes locais,
seguindo uma lista elaborada previamente segundo critérios relacionados com os traços
de personalidade e interesses específicos de cada um.
À medida que levo cada criança até ao seu espaço, mostro-lhe os materiais
que tem à sua disposição e explico que deverá organizá-los, tal como faria
Ursus Wherli.
Na sala podemos encontrar uma mesa com uma imagem de Keith Haring e a
mesma imagem em partes, uma de Kandinsky e uma com letras chinesas (para colar
numa folha). As imagens mais complexas são atribuídas às crianças mais velhas.
No chão, encontram-se vários panos e cartolinas com caixas diferenciadas
contendo berlindes, conchas, mosaicos, pedras, carrinhos, lápis de cor,
carrinhos de linha, molas de roupa, pilhas, peças de vidro colorido, peças de
lego e um ramo de acácia.
Enquanto as crianças realizam as suas composições, vão sendo feitos registos
fotográficos das mesmas para guardar como memória (as composições são efémeras
e algumas vão sofrendo alterações ao longo da sessão).
À medida que terminam as suas composições, as crianças são convidadas a
irem observar o trabalho dos colegas, mas sem interferirem (a não ser que a
outra criança queira ser ajudada). Com a ajuda dos colegas que terminaram e que
se juntam a outros, vão surgindo novas composições, que são também registadas.
As crianças são avisadas que não devem correr nem fazer barulho, pois trata-se
de uma exposição e devem agir como se estivessem num museu ou numa galeria.
Apesar da maioria das crianças já ter terminado, algumas continuam
concentradas nos seus trabalhos.
No final da manhã, reunimos o grupo em roda, sentados no chão, para falar
sobre a actividade. Com alegria, confirmo que a actividade correu muito bem e
que eles estiveram muito concentrados na organização dos seus materiais.
Depois, cada um vai dizendo quais os materiais com
que trabalhou e a forma como os organizou. Algumas crianças atribuem sentidos inesperados
às suas composições e vão junto do trabalho para explicá-los. Porque há quem
organize de forma matemática, mas também quem crie uma figuração: um fundo
marinho com ouriços-do-mar e peixes, uma máquina de fazer diamantes ou a
representação de uma barbie-fada.
As crianças vão comentando que gostam das
composições dos colegas e mostram-se bastante satisfeitas com a actividade.
Voltamos ao Jardim… É sexta-feira. Na semana seguinte, voltamos ao mesmo
auditório, desta vez para ver a Conferência “Tidying up art” que Ursus proferiu
no programa TED-talks, na Califórnia, em 2006. Vou traduzindo e eles vão
comentando os novos trabalhos que não conheciam, desconstruções de obras dos
mestres da pintura moderna. Em seguida, vemos ainda projectadas as fotos do
atelier “Mania da organização”: as crianças trabalhando e imagens das obras
finais. Cada autor levanta-se e comenta o seu trabalho, explicando o processo e
o critério de organização; alguns até referem certas hesitações iniciais.
Agora sim… fechámos o atelier com chave de ouro. Foi uma produção feliz.
Quantas vezes produções morosas, e preparadas com a mesma paixão, não surtem o
efeito esperado, trazendo-me alguma (muita) frustração.
Depois…Bem, depois, há um dia assim… brilhante… que me reconcilia de
novo com esta ideia fixa de que só sei ser Educadora.
Notas finais – Esta
é a descrição de um atelier desenvolvido no Jardim de Infância do Vimeiro, em Maio
de 2013. O artigo foi elaborado com o apoio do texto redigido pela doutoranda
Sandra Rosado Fernandes, professora de Artes Plásticas na Escola Superior de
Educação de Lisboa, que assistiu à sessão. Um agradecimento especial é devido ao
Dr. Rui Filipe, do Centro de Interpretação da Batalha do Vimeiro, um incansável
colaborador, que deu apoio técnico a esta actividade.
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