quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

"Mania da Organização", artigo de Helena Martinho


Mania da organização
Descobrindo a arte de Ursus Wherli

Artigo de Helena Martinho publicado em
Cadernos de Educação de Infância N.º 100, Setembro-Dezembro.2013


Hoje vamos receber um convidado muito especial. Ele é suíço e por isso não poderá estar aqui connosco, mas mandou-nos esta foto sua e de vários trabalhos que tem feito para vos mostrar…”
Foi assim que no auditório do Centro de Interpretação da Batalha do Vimeiro se deu início a uma divertida e muito participada sessão sobre Ursus Wherli. Este artista e comediante tem realizado um curioso trabalho de reorganização de espaços e ambientes, objectos, pinturas, bandeiras, elementos da natureza…As imagens dos seus trabalhos dizem (quase) tudo sobre o conceito subjacente à chamada “art of clean-up”.

A sessão iniciou-se com a passagem de um powerpoint com imagens de vários trabalhos de Ursus, antes e depois de organizados. Começámos por analisar a figura do artista, a formalidade com que está vestido na foto projectada, de fato completo e gravata …“como se fosse para um casamento”, adianta um menino.
De seguida, expliquei-lhes que o Ursus é um artista, mas que é um artista muito especial, pois gosta muito de organizar tudo à sua volta.
Surge uma primeira imagem: todos identificam uma caixa de areia com brinquedos espalhados e um menino a brincar. Questiono as crianças sobre como poderiam organizar “aquela confusão”. Surgem algumas sugestões das crianças. Na imagem seguinte todos os brinquedos estão organizados em filas, por categorias. As crianças analisam a organização realizada pelo artista e tentam contar quantos brinquedos existem em cada fila, referindo o que está em maior e menor quantidade.
A imagem seguinte é uma fotografia aérea de um parque de estacionamento. Imediatamente, as crianças tentam encontrar soluções para “arrumar” os carros estacionados. Deixo-os avançar com várias hipóteses e só depois passo à imagem seguinte. Algumas crianças confirmam que acertaram. Os veículos estão arrumados por cores e as crianças vão descrevendo o que vêem, levantando-se e indo apontar as diferentes filas.
Surge nova imagem: um ramo de pinheiro. Como já entraram no jogo, as crianças começam logo a avançar ideias para organizar a imagem, algumas revelando muita imaginação. Todas as ideias são valorizadas, o que as leva a não terem receio de falar. Por vezes torna-se difícil gerir o tempo de cada um e há que solicitar a intervenção dos que se mantêm mais silenciosos perante o quase incontrolável entusiasmo de outros…
De repente uma foto de um céu estrelado… e de seguida as estrelas alinhadas por tamanhos e brilhos. Um menino adianta, decidido: “Ele usou um truque de computador. Só assim é que ele conseguia pôr aquelas estrelas todas organizadas!” E outro acrescenta: «Pois… não era como nos carros, que ele ia com a chave e podia conduzir e mudá-los de lugar!”
Um comentário curioso surge quando aparece uma foto de um letreiro escrito em caligrafia asiática. Um menino apreciador de animação japonesa adora este tipo de escrita e assume que aquela é uma palavra japonesa: “Ali diz Japão”. Nova imagem: Ursus não resistiu a dissecar os vários tracinhos que compõem a palavra, alinhando-os por formas e tamanhos. Lanço uma pergunta provocadora: «E agora, continua a dizer ali Japão?», e o mesmo menino comenta sem hesitar: «O único que sabe que ali diz Japão é o Ursus!».
Em seguida, surgem trabalhos baseados em pinturas de autores consagrados. Uma obra de Paul Klee, composta por quadrados, depois organizados por colunas de cores, foi rapidamente identificada pelo grupo porque a imagem já fora usada numa actividade no âmbito da matemática. De novo compararam as alturas das colunas e o número de quadrados em cada uma.
Numa imagem que reproduz uma obra de Malevich, as crianças reconhecem um homem a cortar uma árvore e na imagem seguinte tentam encontrar as partes respectivas, como se se tratasse de peças de um puzzle.
Numa profusa e híper-colorida obra de Keith Haring, que Ursus organiza por colunas de cor, as crianças querem contar os pedacinhos de cada cor e voltam atrás várias vezes para ver “se o Ursus não se esqueceu de nenhum bocado!”
Quando surge a pintura do quarto de Van Gogh, uma criança reconhece-a de um puzzle que há no Jardim. Ao observarem, na imagem seguinte, a “organização” realizada pelo artista, as crianças acham que a imagem está agora mais desarrumada… pois o artista colocou todo o mobiliário em cima e debaixo da cama… supostamente para se iniciar uma limpeza ao quarto. Em jeito de segredo um dos meninos comenta: «Ai, se o Ursus fosse ver como estão os brinquedos no meu quarto, organizava logo aquilo tudo!!!»

No final da apresentação e de muitos comentários divertidos e perspicazes, explico que vão passar para outra sala: a sala da organização e do silêncio.
O grupo desloca-se para uma sala onde já estão preparados os materiais sobre os quais irão intervir. Distribuo as crianças pelos diferentes locais, seguindo uma lista elaborada previamente segundo critérios relacionados com os traços de personalidade e interesses específicos de cada um.
À medida que levo cada criança até ao seu espaço, mostro-lhe os materiais que tem à sua disposição e explico que deverá organizá-los, tal como faria Ursus Wherli.
Na sala podemos encontrar uma mesa com uma imagem de Keith Haring e a mesma imagem em partes, uma de Kandinsky e uma com letras chinesas (para colar numa folha). As imagens mais complexas são atribuídas às crianças mais velhas.
No chão, encontram-se vários panos e cartolinas com caixas diferenciadas contendo berlindes, conchas, mosaicos, pedras, carrinhos, lápis de cor, carrinhos de linha, molas de roupa, pilhas, peças de vidro colorido, peças de lego e um ramo de acácia.
Enquanto as crianças realizam as suas composições, vão sendo feitos registos fotográficos das mesmas para guardar como memória (as composições são efémeras e algumas vão sofrendo alterações ao longo da sessão).
À medida que terminam as suas composições, as crianças são convidadas a irem observar o trabalho dos colegas, mas sem interferirem (a não ser que a outra criança queira ser ajudada). Com a ajuda dos colegas que terminaram e que se juntam a outros, vão surgindo novas composições, que são também registadas. As crianças são avisadas que não devem correr nem fazer barulho, pois trata-se de uma exposição e devem agir como se estivessem num museu ou numa galeria.
Apesar da maioria das crianças já ter terminado, algumas continuam concentradas nos seus trabalhos.
No final da manhã, reunimos o grupo em roda, sentados no chão, para falar sobre a actividade. Com alegria, confirmo que a actividade correu muito bem e que eles estiveram muito concentrados na organização dos seus materiais.
Depois, cada um vai dizendo quais os materiais com que trabalhou e a forma como os organizou. Algumas crianças atribuem sentidos inesperados às suas composições e vão junto do trabalho para explicá-los. Porque há quem organize de forma matemática, mas também quem crie uma figuração: um fundo marinho com ouriços-do-mar e peixes, uma máquina de fazer diamantes ou a representação de uma barbie-fada.
As crianças vão comentando que gostam das composições dos colegas e mostram-se bastante satisfeitas com a actividade.
Voltamos ao Jardim… É sexta-feira. Na semana seguinte, voltamos ao mesmo auditório, desta vez para ver a Conferência “Tidying up art” que Ursus proferiu no programa TED-talks, na Califórnia, em 2006. Vou traduzindo e eles vão comentando os novos trabalhos que não conheciam, desconstruções de obras dos mestres da pintura moderna. Em seguida, vemos ainda projectadas as fotos do atelier “Mania da organização”: as crianças trabalhando e imagens das obras finais. Cada autor levanta-se e comenta o seu trabalho, explicando o processo e o critério de organização; alguns até referem certas hesitações iniciais.
Agora sim… fechámos o atelier com chave de ouro. Foi uma produção feliz. Quantas vezes produções morosas, e preparadas com a mesma paixão, não surtem o efeito esperado, trazendo-me alguma (muita) frustração.
Depois…Bem, depois, há um dia assim… brilhante… que me reconcilia de novo com esta ideia fixa de que só sei ser Educadora.

Notas finais – Esta é a descrição de um atelier desenvolvido no Jardim de Infância do Vimeiro, em Maio de 2013. O artigo foi elaborado com o apoio do texto redigido pela doutoranda Sandra Rosado Fernandes, professora de Artes Plásticas na Escola Superior de Educação de Lisboa, que assistiu à sessão. Um agradecimento especial é devido ao Dr. Rui Filipe, do Centro de Interpretação da Batalha do Vimeiro, um incansável colaborador, que deu apoio técnico a esta actividade.

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