
Mas aconteceram outras coisas no mundo: no Algarve, um bando não identificado assaltou durante a noite uma máquina de tabaco, no interior de um estabelecimento comercial. A câmara mostra a vitrine, os ferros torcidos, vidros partidos no chão, entrevista a empregada da loja, a polícia, torna a mostrar as mesmas imagens da vitrine, dos ferros torcidos. Há imagens captadas pelas câmaras de vigilância, a preto e branco, que mostram homens encapuzados aos saltinhos na filmagem sincopada.
Mas não, ainda não é tudo. Há ainda uma máquina Multibanco assaltada com recurso a uma escavadora. Numa demonstração de grande perícia os assaltantes conseguiram extrair o cofre com um dano mínimo no cubículo que o albergava. A câmara mostra a marca deixada pelos dentes da retroescavadora na parede do edifício. Podemos ver em detalhe cada marca de cada dente na parede e ainda temos tempo para chamar a família. “Ó Guida, vem cá ver o que eles agora fazem com uma retroescavadora!…” Mas não é tudo, há também uma ourivesaria assaltada. A câmara mostra a vitrine partida, uns ferros torcidos, entrevista a dona da loja, o polícia, a senhora que viu, o homem que ouviu, outro que não deu por nada, outro que não viu mas foi por pouco porque se tivesse passado uns minutos antes ou depois, outro que comenta estes assaltos que há agora, outro que diz que não há polícia que chegue, outro que diz que não há suficientes câmaras de videovigilância, porque se houvesse uma câmara a espreitar pelo rabo de cada cidadão em tempo real poderiam evitar-se todos os crimes e fazer a despistagem do cancro do cólon ao mesmo tempo.
Mas não é tudo. Finalmente uma notícia, sobre uma coisa que interessa a todos: os aumentos em 2012, os aumentos da electricidade, da saúde, dos impostos, dos restaurantes, dos transportes, de tudo. A notícia fala dos aumentos e entrevista “populares”. Há reacções resignadas, sarcásticas e discordantes. Não há ninguém indignado, nem sequer contestatário e muito menos agressivo. A sociedade portuguesa está resignada. Porque é que são os aumentos? Bom, a peça não diz mas percebe-se que é porque tem de ser. Há quem não concorda, mas são aqueles que são sempre do contra. Noutro programa, numa mesa-redonda, o moderador olha com indisfarçado ar de nojo para um sindicalista a quem pergunta com enfado: “Mas não há nestas medidas anunciadas pelo Governo nenhuma com que concorde?” O subtexto é claro: se concordasse com metade das medidas e discordasse da outra metade, ainda vá lá! Mas assim… só pode ser porque é um ressabiado de maus fígados.
Mas há boas notícias! Nem tudo é mau. Uns voluntários distribuem sopa e bolo-rei a sem-abrigo durante a noite. Pessoas abnegadas e bondosas, que prescindem do conforto do lar para ajudar o próximo. A apresentadora do noticiário exulta, de sorriso rasgado, está feliz, é Natal! É Natal! A voluntária entrevistada pela repórter que acompanhou os voluntários exulta por esta experiência de solidariedade que teve oportunidade de viver. Que bom que é haver pobrezinhos que nos dão oportunidade de sermos solidários. Que bom que é ver a sociedade civil a ocupar o lugar que o Estado não pode ocupar. “O Estado não tem vocação para gerir instituições de solidariedade social”, diz o bem-aventurado ministro Pedro Mota Soares, com a boa consciência a transbordar fatias de bolo-rei. Os sem-abrigo aceitam a sopa, o bolo-rei, quase nenhum aceita ser filmado, só do pescoço para baixo. É natural. Têm vergonha. São os únicos que não são voluntários.

Mas, seja qual for a razão, será que os jornalistas da televisão se dão conta do retrato que fazem do país? Um país resignado, onde o único discurso pertence ao Governo, onde não há opções políticas, reais discordâncias, debates em pé de igualdade, alternativas, revolta, indignidades, hipocrisias? Onde há apenas assaltos para justificar o medo, acidentes para emocionar, pobres para justificar a caridade e governantes tão generosos que dão sete euros por mês aos mais pobres e que nos explicam que não sobra dinheiro para o SNS depois de pagar o juro das dívidas que meteram nos bolsos dos seus amigos?»
José Vítor Malheiros
PÚBLICO, 3.Jan.2012
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