sábado, 23 de abril de 2016

Inocências


Eu sempre fui muito inocente. Mesmo hoje, que já tenho idade para ter juízo. Imaginem que eu ainda acredito no Pai Natal do entendimento dos partidos de esquerda (PS, BE, PCP e PEV) gerado no Parlamento. Com dúvidas, é certo, mas acredito. Já o cronista João Miguel Tavares, benza-o Deus pela sua fé, tem uma certeza inabalável: não acredita, ponto final.
Agora que estou falando de Pai Natal, em verdade vos digo: eu era um sincero crente e admirador desta figura enternecedora... e vibrava quando era chegado o mês de Dezembro na Chamusca. O presépio da família de José Cid, o musgo que se ia apanhar à charneca para enfeitar a composição de bonecos, as conversas dos adultos, tudo batia certo. Até que, um dia, descobri que as meias que estavam no meu sapatinho tinha sido eu a comprá-las a mando de um adulto distraído ou desconhecedor de que as meias eram a mim destinadas. Foi uma desilusão.
Mas há mais inocências do tempo da minha meninice. Por exemplo, eu julgava que as nuvens eram o resultado do fumo que saía das altas chaminés que existiam na minha terra: a chaminé da padaria do senhor Samouco, a chaminé da cozedura do barro, a chaminé da fábrica Spalil... Com o tempo, por umas fui tirando outras, até que cheguei à conclusão que ali havia gato, não podia ser. O que seria então? Donde viriam aquelas manchas, umas mais claras outras muito escuras, que de vez em quando despejavam tanta água na vila e nos campos? O pior não era isso, o pior era que nessas alturas trovejava imenso, havia intensos clarões para o lado da lezíria, às vezes até pegava fogo na maracha e tocava a sirene junto à igreja de Nossa Senhora do Pranto. Era um alvoroço na vila! E eu, inquieto e impotente, desesperava sobretudo com o medo sentido por minha Mãe, que se metia debaixo dos cobertores e dizia uma rezas que eu não entendia, só percebia que havia uma Santa Bárbara algures por ali.
Outro exemplo de inocência, este mais exótico. A certa altura, não sei porquê, convenci-me (ou convenceram-me) que as cobras de água nasciam de cabelos de mulher longos postos de molho durante algum tempo. Recordo-me de, à socapa, apanhar alguns cabelos de minha Mãe deixados cair quando ela se penteava. Junto do poço que havia em nossa casa escondi uma lata onde colocara meia dúzia de cabelos. Vigiei atentamente o meu tesouro durante uma semana, mas rapidamente acabei por constatar que aquilo não dava resultado...
Quando os meus Pais compraram uma telefonia, eu deliciava-me a ouvir a música que saía daquela caixa. Deitado na cama, pensava: Quem estará a tocar? E fui levado a imaginar que dentro da telefonia haveria gnomos músicos... É que eu via gnomos à noite ao adormecer, virado para a máquina de costura de minha Mãe que estava no meu quarto. Os gnomos brincavam na ondulada estrutura metálica da máquina Singer, subiam e desciam desenvoltos, e era ao som das suas risadas que eu adormecia. Quando pensei na quantidade de telefonias que havia só na minha terra, concluí: não é possível haver gnomos para tantas telefonias, a explicação deve ser outra. E assim fui crescendo, perdendo uma ilusão aqui, outra ali...
Estoutra inocência é mais séria... Estava eu a entrar na adolescência, o tempo em que as hormonas começam a subir à cabeça. Um dia, encontrava-me em casa de uns amigos de meus Pais e fiquei a sós com a filha mais gira na sala de costura onde ela tricotava, busto pendente para o trabalho. Fingindo que lia uma revista, arqueado também eu, fui-me fixando no seu cabelo louro, nas esperanças que lhe brotavam do peito, nos lábios de um rosa apetitoso e... a certa altura estávamos testa com testa. Foi então que uma leve rotação das cabeças levou a que os nossos lábios se encontrassem. Era o meu primeiro beijo! Acontece que, depois de nos despedirmos, fui dar uma explicação de matemática a dois jovens, netos de um médico, a quem ajudava a resolver dificuldades no estudo a troco de algum dinheiro de bolso. Estava-lhes eu a falar do desenvolvimento do quadrado da soma, eis que me bate na cabeça uma certeza forte, que me deixou transtornado: Dei-lhe um beijo... tenho de casar com ela! Era uma questão de honra, eu não queria que, fruto de alguma indiscrição, ela fosse alvo de dichotes. Ainda passei umas noites mal dormidas, mas depois acalmei... e cheguei à conclusão de que aquela certeza era manifestamente exagerada.
Em matéria de inocências, daqui para a frente só me resta mesmo esperar que o João Miguel Tavares não tenha razão.

1 comentário:

  1. FABULOSO....bem me lembra do pavor a trovoadas que padecia a avó Mila....grato pela partilha...abraço

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