Hélia Correia recebeu ontem o Prémio Camões em Lisboa.
Este é o texto completo que a escritora leu na entrega do
prémio.
Hélia Correia com o meu neto João Guilherme |
O peso destes
nomes curvaria gente bem mais robusta do que eu, não fosse o caso de a leveza
ser o primeiro atributo de um escritor. Aliás, quanto mais os frequentamos,
menor pavor inspira a sua sombra.
Não venho aqui
como parceira mas como íntima, como alguém mais ligado pelo amor do que por
ambições identitárias. Com Luís de Camões passeio em Sintra, enquanto ele
espera o jovem rei que anda pelos bosques, enfeitiçado, já um pouco
ensandecido. E a ligação aos meus contemporâneos, Sophia e Saramago, Eduardo Lourenço,
Maria Velho da Costa, Mia Couto, feita de encantamento e aprendizagem, toca-me
infantilmente o coração quando me traz afinidades, uma flor de frangipani que
esvoaça num jardim de Maputo, as palavras que não partiram com quem já partiu,
uma tão querida voz ao telefone, uma carta enfeitada de papoulas. Estou com
eles, não entre eles. E assim estou bem.
Devo falar de
tripla gratidão: a gratidão aos promotores deste prémio ao qual foi dado o nome
maior das nossas letras, a gratidão aos membros do júri que escolheram a minha
escrita para tamanha dádiva, a gratidão a um acaso de nascimento que me deu
como língua materna o português.
Também com
gratidão evoco a tão citada, e mal, passagem escrita por Pessoa, aliás Bernardo
Soares, pois que, achando-se escrita, e por ele escrita, me abre um certo
caminho à ousadia: que amo mais a língua do que a pátria. Que me imagino
armada, a defendê-la contra quem a quisesse aniquilar. As lutas pela
independência que travámos deixam-me o arrepio de pensar que o português se
perderia, se perdêssemos. Que morte há de ter sido a de Camões, julgando que
morria com a pátria, isto é, com o lugar dos seus poemas!
Rodrigues Lobo
formulou-lhe o elogio de maneira concisa e musical ("branda para deleitar,
grave para engrandecer, eficaz para mover, doce para pronunciar, breve para
resolver") durante a ocupação filipina. Os rumos da política eram uns, o
castelhano em palácio havia muito que se fazia ouvir, mas essa língua da nação,
tão acabada que sem esforço hoje a lemos, tão fadada para arrebatamentos de
oratória como para a sátira, como para o lirismo, cultivando sem vénia a
erudição para logo a seguir brincar com ela, essa língua era a grande
resistente – não a expressão de um povo: a sua essência.
Faz agora oito
séculos esta língua. É a prosa formal de um testamento que atesta a data. E
prosas há tão belas naquele dealbar, tão saborosas ainda quando anónimas, que
dir-se-iam um bom pressentimento sobre o tanto e o tão grandioso que depois ia
ser escrito. Mas é na poesia que parece avistar-se um destino, no sentido não
de fatalidade mas daquilo a que alguns chamam o talento colectivo e que talvez
não passe de especial, convidativa variedade na fonética.
Fácil é para nós
esta função de herdeiros de tesouro tão diverso e tão bem acabado, tão antigo
e, no entanto, tão reconhecível. Enquanto noutras línguas a pronúncia se foi
modificando, a ponto de uma rima do século XIX já não se efectivar passadas
décadas, nós cantamos Camões sem que se torne necessária qualquer adaptação.
Como se cada uma das palavras reconhecesse o seu momento de perfeição e nele se
detivesse, porque o quis. O apetite pelos estrangeirismos, moderado que foi,
não lhe fez mal. Incorporou-os elegantemente. Não me refiro às condições
presentes, pois, do que ninguém sabe, ninguém fala. E ninguém sabe o que está
hoje a acontecer.
Esta paixão pela
língua portuguesa, que aqui confesso, cega não será, superlativa muito menos.
Entendo-a rica, porque vem das boas famílias dos antigos e o que recebeu
multiplicou. Mas nunca afirmarei que é a mais rica ou a mais bela do mundo.
Cada povo verá no seu idioma mais virtudes que em idiomas alheios. Que a
disputa, se a houver, seja festiva, pois que os idiomas não ocupam espaço e não
geram rivais mas poliglotas. Anterior à festa, está, porém, aquilo que dizem
História. E a História é bruta e territorial.
Para abordar o
assunto do domínio da língua portuguesa sobre os povos são necessários
delicadeza e conhecimento, inteligência e desassombro em dose máxima. Dou-me
por incapaz e renuncio a uma tentativa de discurso. Sei, sim, que houve
opressão e apagamento. Mas talvez não nos caiba desculparmo-nos pelos conceitos
e acções de antepassados, visto que não nos assumimos legatários e o continuum
moral já foi cortado. Algum dia teremos, quero crer, a congratulação como
vingança.
As línguas são os
únicos seres vivos que não têm origem natural. O erro humano pode prolongar-se,
mesmo inocentemente, por descuido. O português carregará ainda alguma febre
imperial no corpo e é natural que desconfiem dele. Mas acontece que a repressão
é mecânica e a língua é biológica. Se chega às terras de outros povos na
bagagem do colonizador, em breve sai e se desnuda e se alimenta, e adormece e
procria. As armaduras ficam no chão, enferrujadas, podres. A formação orgânica
progride.
Que desígnio será
o seu, agora, se não o de trocar e conviver, isto é, integrar a plenitude,
reconhecendo e respeitando a alteridade? Com os nossos instrumentos humanistas,
seremos nós os capazes de "Medir", como escreve o Professor Eduardo
Lourenço, "esse impalpável mas não menos denso sentimento de distância
cultural que separa, no interior da mesma língua, esses novos
imaginários"?
Como num
pesadelo, não sabemos por que meio fomos dar a esta nova era de horror e de
destruição. Umas são nossas velhas conhecidas, outras indecifráveis, por
ausência de modelos anteriores. Não lhes antecipámos a chegada. Na Idade Média
que nos ameaça não há cancioneiros nem reis-poetas. Na ditadura da economia, a
palavra é esmagada pelo número. A matemática, que começou nobre, aviltou-se,
tornando-se lacaia. Se a literatura salva? Não, não salva. Mas se ela se
extinguir, extingue-se tudo.
O nosso mundo de sobreviventes
está seguro por laços muitos finos. Eu vejo os fios que unem os textos nas
diversas versões do português, leves fios resistentes e aplicados a construírem
uma teia que não rasgue. Quando o angolano Ondjaki dedica um poema ao
brasileiro Manoel de Barros, quando Mia Couto reconhece a influência que teve
Guimarães Rosa na sua escrita transfiguradora e transfigurada pelas africanas
narrativas do seu povo; quando a portuguesa Maria Gabriela Llansol considera Lispector «uma irmã inteiramente
dispersa no nevoeiro», vemos a língua portuguesa a ocupar - não como o invasor
ocupa a terra, mas como o sangue ocupa o coração - um espaço livre, um sítio
para viver, uma comunidade de diferenças elástica, simbiótica e altiva. Esta é
a ditosa língua, minha amada.
Eu dedico este
prémio a uma entidade que é para mim pessoalíssima, à Grécia, cuja voz ainda
paira sobre as nossas mais preciosas palavras, entre as quais, quase intacta, a
poesia. Dedico à Grécia, sem a qual não teríamos aprendido a beleza, sem a qual
não teríamos nada ou, no dizer da Doutora Maria Helena da Rocha Pereira,
"não seríamos nada".
ζουν Ελλ?δα ,
zoun Elláda, viva a Grécia.
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