sábado, 4 de novembro de 2017

A porta




A porta era a fronteira entre o azul e a sombra. Os pés esticavam mais e mais… quase a tocar o infinito. Havia naquele balançar um embalo silencioso… o corpo para cá… para lá… os limites da cal abraçando o movimento. O corpo dormente… o olhar hipnotizado… quantas viagens?... quantos sonhos voados?… quantas estradas percorridas? Sair do refúgio no regaço cheiroso dos suspiros…

Ousar imprimir outro ritmo… a luz… a noite… a luz… a noite… o corpo sempre a crescer… os dedos apontando o céu… Ecos de madeira crepitando no negro do fogão… o cheiro a laranja no ar… o cheiro a laranja no corpo… o açúcar lambido dos dedos, gulosamente… a saia voando como uma labareda… para cá… para lá… O sonho de - quem sabe? - um dia … estar ali e já não estar… ter ficado apenas aquela corda, e um pedaço de madeira… a alma de uma árvore ali suspensa e aquela toada… a luz… a noite… a luz… a noite…

A paz inalada e branca no corpo tisnado e sujo… no corpo cansado da terra… Os pés esticando sempre mais, num desafio de voo… o desejo de ficar assim para sempre… para sempre a idealizar o mergulho no mundo para lá daquela porta…

A cozinha era agora o lugar de todas as viagens do corpo e da alma…

Nas traves do tecto baixo a avó pendurara um baloiço…

Pela porta aberta só os anjos podiam ver umas pernas que vogavam para cá… para lá… e aquela saia esvoaçante era a brisa dos seus dias.


Helena Martinho
03.Novembro.2017

4 comentários:

  1. ADOREI...voltei aos meus tempos de adolescentes em que ia à Chamusca...também tu LENA...me fizeste voar até lá!!!BEIJÃO!!!

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  2. Gostei. Um beijo para a minha prima, que não conheço. Gosto dos teus escritos.

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  3. Lindo! Era isto debaixo do telheiro da casa da avó. Eram 2 os baloiços, e só um desejo,... quem conseguia levantar as telhas com os pés... Um abraço

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