quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Carta a minha Mãe


Mãe,

Faz agora vinte anos que partiste sem que tivéssemos tido a oportunidade de nos despedirmos. Recebido o telefonema da Lina, fomos à Chamusca, eu e a Piedade. Encontrámos-te na cama do hospital, sem dares acordo de ti. O enfermeiro deu-nos algumas esperanças… mas eu senti que te perdera para sempre.
Durante noites e noites sonhei contigo. Só ao fim de muito tempo encontrei paz de espírito. Agora já não sonho contigo, mas tenho a sensação de te ter por perto. Sinto que me proteges e aos meus, qual anjo da guarda vigilante. 
Recordas-te, Mãe, que ao ver-te costurar na borda da cama eu quis ser alfaiate (“fanhate” na minha linguagem de criança)? Recordas-te que, quando concluí a escola primária com dez anos incompletos, a tua preocupação era “tirar-me da rua” para “não apanhar vícios”? Passados uns meses estava a “trabalhar” no armazém Pedroso & Rodrigues, onde cheguei a marçano de balcão, ao lado dos veteranos Zé Araújo, Constantino e Vitorino. Na altura não se falava de trabalho infantil, que todas as migalhas eram poucas para o pão da casa. O trabalho no armazém até tinha aspectos divertidos, e cinquenta escudos por mês era dinheiro…
Mas tu, Mãe, que eras uma Mulher especial, sonhavas com um futuro diferente para mim, embora não soubesses qual. Recordas-te de teres ido falar com o senhor Carmo? De o teres convencido a aceitar-me como uma espécie de moço de recados na repartição de finanças? De ele ter prometido fazer o necessário para eu frequentar o colégio que havia na vila, onde poderia fazer os dois primeiros anos do liceu? Recordas-te de como a tua iniciativa, com o apoio daquele Amigo, foi o princípio de tudo?
Recordas-te que projectávamos o futuro por pequenos passos? O “plano” era construído à medida que as diferentes etapas eram vencidas: com o segundo ano do liceu, poderia ser funcionário da CP; com o quinto ano, poderia ser aspirante de finanças como o Constâncio; com o sétimo ano, poderia ser empregado bancário. Nunca chegámos ao ponto de pensar que eu poderia frequentar um curso superior, mas foi o que aconteceu. Nessa altura não escasseavam empregos, era um tempo em que até se era convidado antes da conclusão da licenciatura. Lembras-te da nossa alegria quando comecei a trabalhar na Junta de Energia Nuclear?
O caso foi comentado na Chamusca. Gente humilde acreditou que era possível... Lembro-me de uma pergunta: «Para que mandaste o teu filho estudar?», e respectiva resposta: «Para subir na vida como o filho da Maria Emília!» 

Alcançaste o teu sonho... 
Com muito trabalho, sacrifício e até algumas humilhações. 

Repousa em paz, Mãe!

Eduardo

2 comentários:

  1. Caro Snr. Dr. Eduardo João Cardoso,

    Há já largos anos consultor jurídico no Ministério do Trabalho [já conto com 57 anos…(hoje da Solidariedade e Segurança Social)], aqui na Praça de Londres, pesquisei hoje na Internet a eventual existência de um “barbeiro” que ficasse aqui perto da Avenida de Roma. E dei com o seu “Blog”, onde refere, num artigo, a “Barbearia Londres”.

    Curiosamente, como não costumo passar pela Avenida Manuel da Maia, o referido estabelecimento sempre me passou despercebido, pese embora algumas vezes encontrar-me ali perto, na “Mexicana”.

    E ali fui, tendo sido muito bem atendido pelo Snr. Ilídio, bem como por todo o “staff”. Fico cliente, sem dúvida. Já não existem estabelecimentos assim, ou vão rareando… Portugal transformou-se, em muitos aspectos para pior.

    Mas não queria desviar-me do principal motivo deste meu comentário, qual seja, este seu artigo sobre sua mãe. Tocou-me bastante, tanto mais que perdi a minha demasiado cedo… e compreendo a respectiva dor.

    Retrata, com efeito, um Portugal que já não existe, porventura de tempos difíceis para muitas pessoas, mas no qual o mérito e o esforço eram compensados – como diz e bem, não havia desemprego, e quem ascendia a um curso superior, “ab initio” sabia que teria um bom futuro…

    Tenho saudades desse tempo, no qual todos nós ainda não conhecíamos a ausência dos nossos familiares, tempo também para a existência de uma Nação que fervilhava de gente e de actividade – a “Província” completamente habitada, sem espaços vazios, com gente ocupada com os seus mesteres, tempo em que Portugal ainda era uma potência (crescia a economia a 7%, 8% e 10% - hoje só a China com estas cifras…). País que oferecia respeito a essa Europa que hoje nos despreza, governada por políticos cultos, com sentido de Estado e com uma missão no horizonte.

    Aceite um abraço deste seu (recente) leitor.

    Delfim Cabral Mendes



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  2. Caro Dr. Delfim Cabral Mendes,

    Só hoje (19.Março) tive conhecimento deste seu comentário por intermédio da minha filha mais velha, de seu nome Teresa Martinho Marques.

    Embora com atraso, não quero deixar de lhe agradecer as suas amáveis palavras, e o "retrato" certeiro do que foram aqueles tempos difíceis.

    Cordiais saudações,

    Eduardo Martinho

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