No subtítulo de tempo de recordar esclarece-se que este é “um blogue a várias mãos”… Por aqui têm passado vários membros da família. Hoje é a vez do meu filho Paulo Miguel, que é veterinário e vive na Guarda com a família. O texto que se segue é da sua autoria, mas, atenção, foi escrito quando ele era um pré-adolescente… Andei a mexer em papéis antigos e há muito material a explorar... para mais tarde recordar!
* * * * *
Aquela manhã, fresca como uma flor borrifada de orvalho, foi para mim uma grande experiência. O sol começava a despontar, lá muito ao longe. Era como o nascer dum pinto que já há muito esperava a oportunidade para sair da escuridão do pequeno ovo. O galo, fiel como um cão, entoou a sua canção matinal. Ele era o relógio da aldeia. Quando no meio de cobertores remendados e sujos, os camponeses o ouviam, levantavam-se sem pressa. O dia do trabalho chegara. Eram sete horas em ponto. Também eu acordei cedo naquele dia. Ainda a bocejar, ouvi a voz da minha avó Mila: "Levanta-te, hoje vens comigo ao campo apanhar pepino." Oh, que grande surpresa! Eu? Um petiz, inocente como um coelho, ir trabalhar?!
Excitado,
vesti os meus calções e a minha camisola. Desci a escada e tomei o café. O céu
estava azul. Era como uma tinta inesgotável. Uma nuvenzita medrosa atravessava
aquele horizonte tão vasto. A carroça velha, carunchada, do vizinho Salgado
estava pronta. A mula que a puxava era a velha "Margarida", de crina
suja, olhos brilhantes que lhe dão uma expressão muito digna e um lombo cansado
do trabalho extenuante e da chibatada diária. E falando, falando, lá fomos num
caminho pedregoso ladeado por árvores colossais, enormes como gigantes. Os
campos de trigo pareciam uma folha de oiro e um moinho, no cume do monte, girava
como um pião ao sabor do vento. Passámos por vários lavradores que acenam as
mãos calejadas. E a graça duma jovem rapariga, caminhando em direcção ao poço,
dando a ideia duma borboleta colorida, purifica ainda mais o delicioso clima da
manhã.
Ôooo!
― grita o vizinho Salgado, fazendo a mula ofegante parar. Saltei da carroça e
entrei na propriedade onde iríamos trabalhar. Numa pocinha de água bebia um
pintassilgo de cabeça nervosa, bico pequenino e penas coloridas. Tentei
apanhá-lo para o acariciar, mas é claro que ele me fugiu e o sonho desvaneceu-se
no ar. Mais lá adiante, em grupos alinhados, estavam inúmeras árvores de fruto
como soldados direitos e quietos no seu batalhão. Um espantalho, a quem puseram
cara de mau, parecia suspirar: "Façam-me rir, quero brincar com os
melros." No tanque da água coaxava uma rã verde, de olhos salientes. Assim
que me viu, deu um salto e num mergulho excelente desapareceu na água fria.
Juntei-me
a minha avó e caminhámos até ao campo de pepinos. Cada camponês trazia no braço
um grande cesto de verga.Com destreza colhiam o pepino. Entusiasmado, também
tentei fazer o mesmo, mas vi que era mais difícil do que eu pensava. Dai a
cinco minutos, já escorria suor. Queria eu lá saber do suor, atarefado ajudava
a minha avó a encher o cesto.
Quando
soou o meio-dia no sino da igreja fomos almoçar. À sombra duma oliveira
comíamos broa e peixe frito a acompanhar. Uma aragem suave, refrescante, parecia
querer aliviar-nos do esforço despendido. No chão coberto de erva caminhavam
formigas pequenas e pretas à espera de alguma migalhita. Pombos voavam no céu
lentos e cinzentos. Acabei de comer e corri por entre as flores. Que feliz me
sentia! Desejava que o dia nunca mais acabasse, que fosse um dia quanta a
extensão do céu. Um regato corria ali perto. De água límpida. Olhei deslumbrado
para aquela pequena grande obra da Natureza. Voltei para junto dos camponeses. Trabalhámos
até ao pôr-do-sol. Aquela bola de fogo escondia-se lá muito ao longe anunciando
tempo quente.
Voltámos
a casa e deitei-me com o corpo dorido de andar dobrado. Adormeci, sonhando que
estava com um pintassilgo numa mão e uma rã na outra. Aquela manhã foi para mim
algo que nenhum livro me poderia ter dito. Naquela manhã fui livre.
Foto: Maio.1967
Texto: Dez.1975
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