terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

No tempo em que havia Tempo…

A minha filha Teresa descontinuou o seu blogue (http://tempodeteia.blogspot.pt) há cerca de um ano, certamente porque outros interesses surgiram… mas a verdade é que eu perdi o prazer de ler a sua prosa com a regularidade a que me habituara. Hoje decidi repescar um post seu (Do baú do Miguel para outra arca...) de Novembro de 2007. Alterei-lhe o título pelas razões a descobrir no que se segue...


Ao recordar o que o Miguel tirou do baú das memórias e que descreve de forma soberba o actual estado da escola, não consegui deixar de pensar em algo que tenho dito vezes sem conta, de há alguns anos para cá, sempre que olho para os horários dos alunos (cada vez mais atropelados e cheios de dióxido de carbono, pelas razões conhecidas): se eu fosse miúda agora ia ser uma miúda infeliz e asfixiada na escola... admito até que os meus pais precisassem de consultar um (pedo)psiquiatra quando vissem a tristeza acumular-se em mim à medida que os dias escolares progredissem, sem me deixar tempo para viver nos intervalos saborosos de não-escola.
Quem sou construiu-se em percentagens variadas por efeito da genética, da educação dos pais e da educação providenciada pelo tempo sobrado da escola, que era muito, felizmente. A escola lá teve o seu papel, um professor ou outro deixaram boas marcas, mas não foi a escola que me fez no mais essencial da minha essência. Disso tenho a certeza. E ainda bem que não foi. Porque a verdade é que não pode ser nem tem de ser assim.
Lembro-me de ter frequentemente horário de manhã e as tardes por minha conta. Uma alegria. A sorte de ter a Mãe em casa e de poder regressar ao lar ao invés de um ATL, explicador ou até mais escola, mais disciplinas, mais aulas de qualquer coisa. Lia. Sim, lia muito. Juntava-me com os amigos nas escadas do prédio em Lisboa e foi com eles que aprendi a tocar viola. Escrevia poemas, histórias, inventava jornais, fazia desenhos, pintava. Namorava, trocava livros e LPs... assim conheci muitos músicos que desconhecia. Íamos com a Mãe ao cinema, fazíamos chás com as bonecas quando o urso da Isabel fazia anos (ele fazia anos várias vezes por ano) e até o monopólio com os manos, e outros jogos de grupo, tinham sabor especial nas infinitas tardes partilhadas a quatro, cinco com a Mãe presente mas deixando-nos espaço para respirar. Brincávamos aos 5 e aos 7 com os amigos do "ciclo preparatório", íamos para o terraço de binóculos a ver se descobríamos matrículas de carros roubados (que os jornais da altura divulgavam), aventuras inventadas. Às vezes descíamos, para mais aventuras cheias de ervas daninhas, até às ruínas de uma casa velha que mais tarde se transformaram na embaixada da Rússia (depois do 25 de Abril). Estudava, muito, que o tempo era suficiente para tudo. E o Pai chegava do trabalho e fazia experiências de física e propunha desafios. E brincávamos aos correios tardes inteiras, preenchendo impressos que a Mãe trazia de lá, escrevendo cartas que o carteiro colocava em cada divisão da casa. Desenhávamos selos, construíamos envelopes, fazíamos moedas passando os lápis de cor em papel sobre a textura original dos escudos, que depois passávamos tardes a recortar, desenhávamos notas, às vezes as três manas alinhavam nos "cóbois" e nos "índios" do mano, simulados por ínfimos bonequinhos de plástico, aos quais se juntavam soldadinhos. Fazíamos tendas em papel, os ladrões roubavam bancos, os bons prendiam os maus. Ensaiávamos peças de teatro para apresentar aos pais. E nós, as mais velhas, fazíamos de professoras para a mais nova: senta-te aí, agora vais aprender a história de Portugal. Não quero. Ó Mãe!!!!! Olha elas! Tem que ser. Tens de aprender. Também lhe líamos histórias e a Lena fez em pano o duende da Floresta da Sophia de Mello Breyner para oferecer à Isabel (que tinha o mesmo nome da heroína)... foi uma das prendas de aniversário (sim, as prendas entre nós eram feitas, pintadas, construídas num tempo sem dinheiro fácil). Eu costumava fazer roupas para as bonecas dela... tricotava e cosia coisas mínimas. A certa altura comecei a fazer camisolas e vestidos para mim em estilo muito "freak"... No liceu e na Universidade usei bastantes...

Eu não sei muito, realmente. Mas sei do bom que era uma falta ou outra de um professor, sem exageros (os pais preocupavam-se, claro, se a coisa ultrapassava o esporádico), do primeiro café num café, da conversa com os amigos, do poder estar um bocadinho na presença daquele que se amava secretamente, mesmo sabendo que nunca olharia para nós. Crescer, cresci realmente nos intervalos da escola, no tempo que os pais nos dedicavam, no tempo que tinha para decidir o que fazer com ele. Por isso a escola sabia-me bem. Gostava de lá voltar. Ela não me cansava, era um espaço amigável onde podia respirar, um espaço sem exageros, sem excesso de zelos e protecções. O espaço do primeiro beijo, do primeiro poema, da primeira flor.
Oh juventude feliz a minha na escola. Que pena tenho dos miúdos agora.
Repito o que tenho dito tantas vezes e disse mais acima: se eu tivesse de andar hoje na escola ia ser profundamente infeliz. Tenho a certeza de que a detestaria e provavelmente nem seria a aluna que fui no tempo em que tive a felicidade de lá andar.
Mais tempo de ocupação não significa mais qualidade na educação. Um princípio tão aparentemente simples e tão ignorantemente ignorado.
A escola a tempo inteiro? Não, muito obrigada.
Verdade, verdade, eu ainda sou aquela criança de que vos falei. Por isso o tempo inteiro em excesso por lá, por coisa nenhuma, em nada tem beneficiado os meus alunos. Se eu não escrever um poema, se eu não inventar uma canção, se eu não pintar uma aguarela, se eu não ler muito, se eu não estudar, se eu não recuperar do cansaço de um dia para o outro, não poderei ser a melhor professora do mundo. E era só isso que eu queria ser, por favor, se fosse possível. Pode ser? Não me chamem preguiçosa. Eu não desperdiço os dias. Nunca desperdicei o tempo que me era concedido. Transformei tudo em flores que lhes ofereci.
Qualquer professor tem obrigação de ser um artista exigente na sua arte, não o dever de ser um funcionário automatizado e frio.
Eu sei que não será fácil de entender para alguns, mas é que não consigo explicar-me melhor a esta hora da manhã (que é aquela hora que reinventei, para ser possível continuar a fingir que existe um bocadinho de tempo de não-escola, esticando os dias como pastilha elástica...).





Teresa Martinho Marques

(Alverca, Julho.1964)

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