ano lectivo em que trabalhou no Jardim de Infância do Carapito.
Há também os pequenos pormenores. Certas peças de
roupa... porque é que só uso calças, se sou mulher... mas percebem com o tempo
a utilidade de certo vestuário em certas situações. Explico, e eles vêem-no na
prática, que, para brincar com eles, sentar-me no chão, saltar muros, jogar à
bola, fazer jogos, é muito melhor usar calças. Com o tempo isso já não os
incomoda e talvez se tenha desvanecido um pouco a rígida ideia de que as
mulheres devem andar de saia. E, se isso aconteceu, aprendeu-se mais um pouco o
que é o direito à diferença.
Sempre acreditei não haver uma lei de actuação
especificamente masculina ou feminina. E mais importante que inventar e impor
os limites de um e outro sexo é conseguir libertar os indivíduos como pessoas.
Não será esse um processo muito mais rico? Há que fazer o maior e mais
diversificado número de experiências para que cada um se torne autónomo.
Impedir algumas, apoiando-se em preconceitos destituídos de fundamento, é criar
lacunas no processo educativo da criança. E foram lacunas deste tipo com que
deparei imediatamente no grupo de crianças desta aldeia.
Tornou-se então para mim uma linha de acção muito
importante o criar de situações desmistificadoras de certos preconceitos já
adquiridos pelas crianças, no meio familiar e social da aldeia. As crianças
mais novas, de 3 anos e algumas de 4 anos, tiveram um papel importante, porque
menos absorvidas por essas ideias que aos 5 anos se manifestam já claramente.
Vejamos alguns dos preconceitos que observei e quais as tentativas para
diluí-los:
A lida da casa - Em várias brincadeiras e dramatizações as crianças espantavam-se e apontavam a dedo, rindo, um rapaz que varresse o chão, fizesse comida ou lavasse pratos. "Nunca vi um homem a varrer!" Ou: "Os homens não lavam roupa! "Quem lava são as mulheres!" Eram expressões que se ouviam todos os dias.
Em conversa com eles, um ou outro lá disseram que os pais
ajudavam nalgumas coisas e começou por aí o desvanecer da ideia fixa. Depois em
actividades diárias surgia a necessidade de varrer a sala ou lavar mesas,
frascos, pincéis, limpar o pó, regar plantas e os rapazes eram chamados a
participar, aderindo primeiro os mais novos, e só mais tarde os outros. Com
trocas de papéis masculinos e femininos em dramatizações, os rapazes lá eram
encorajados a experimentar o diferente. O lavar passou a ser jogo de água com
panos ou louça e outros objectos e deixou de ser qualificado como brincadeira
feminina. Ficaram um pouco mais livres depois de todas estas experiências.
Libertaram-se da rigidez do estatuto masculino e feminino que tinham à partida.
Saltar à corda - Já todas as raparigas haviam experimentado as cordas novas, ainda os rapazes não lhes tinham tocado senão para dar nós, puxar camiões, fazer jogos de força. Um dia desafiei o mais crescido dos rapazes ("o mais homenzinho", já). Usei exactamente o facto de ele querer ser perfeito em tudo para o levar ao jogo. E consegui. Saltou ao jogo e revelou-se óptimo. Passou a ser o nosso "campeão". Encorajados, os outros rapazes começaram a experimentar e apoiados por mim e pelas raparigas do grupo todos começaram a saltar, cada um com o seu tipo de salto e de rapidez. É essa diferença que é hoje defendida e incentivada. Agora fazemos jogos todos juntos, com lengalengas, canções, contando os saltos ou inventando novas maneiras de saltar. A corda deixou de andar só na mão das raparigas.
Cantar e
fazer rodas - Quando nos juntávamos para cantar ou fazer rodas,
havia sempre um grupo de rapazes mais crescidos que se afastavam para outras
actividades ou ficavam de longe olhando, sérios. Tentei através da sua inserção
em histórias dramatizadas levá-los desprevenidamente a jogos de roda ou
canções. Outra tentativa foi a de, através de jogos feitos na disposição de
roda, conseguir habituá-los à mesma, para que mais facilmente aderissem a uma
roda cantada. Mesmo assim, noto ainda certa reacção negativa dos rapazes a
estes momentos. Creio ser difícil conseguir um resultado totalmente positivo
após 4 ou 5 anos de educação familiar noutro sentido. Sinto essa limitação. Às
vezes devo render-me.
Pintar
os lábios e unhas - Um rapaz apareceu com verniz nas unhas. Claro que teve
que ouvir os reparos e risota de todo o grupo. Mas no meio das pinturas dou com
eles a pintarem as unhas, uma de cada cor. Tinham sido eles a dar a solução ao
caso, aproveitando a ideia de um. Explorei a brincadeira, o prazer que lhes
dava fazer algo diferente. Mais tarde trouxe "bâton" e lápis.
Pintei-os, dramatizámos, rimos. A diversão contagiou mesmo os mais ariscos
àquelas "manifestações femininas". Foi uma vitória para todos eles.
Outras ideias como a de o cor-de-rosa ser "cor de
menina" ou que "os homens não choram" têm sido combatidas aos
poucos em diversas situações que se vão proporcionando espontânea ou
planeadamente.
Penso que o grupo já percebeu a mensagem. Quero sobretudo
que sintam que podem divertir-se, aprender e ter prazer experimentando o outro
lado das coisas. O lado que antes era dito "errado".
Jogo da
macaca - Também neste jogo notei certo afastamento dos rapazes.
Entrei no jogo, desafiei rapazes. Mostrei-lhes que tudo era questão de pontaria
e equilíbrio (habilidade que não é masculina nem feminina, mas de todos). Foram
evoluindo no jogo, entusiasmados e aplaudidos por mim e pelos outros. Hoje
jogam lado a lado, esquecendo ideias antigas.
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