Artigo publicado no jornal O Mirante (Novembro.1988)
Desde cedo Maria Helena soube o que queria ser na vida: educadora de infância! Apenas com vinte anos, já era professora efectiva no Jardim de Infância de Carapito, em plena Beira Alta, onde passou o ano lectivo 1984/85. Para uma jovem lisboeta desconhecedora do que era a “vida a sério”, foi uma experiência ímpar, quase indescritível. A memória desse tempo está registada num relatório publicado recentemente na revista Escola Democrática (Ano IX, n.º 3, 1988), em palavras repassadas de emoção, numa mistura de sentimentos onde cabem o espanto, a entrega e a esperança.
Com a transcrição de algumas passagens dos
dois primeiros capítulos do referido relatório, pretende-se homenagear os
educadores de infância e professores primários deste País, que têm de enfrentar
as dificuldades próprias das condições de vida difíceis que subsistem ainda
em muitas povoações portuguesas, onde os benefícios da civilização tardam em
chegar…
«1. O Princípio
Carapito foi
antes de tudo pesadelo. Que outro nome se pode dar a uma terra estranha que nos
afasta 300 quilómetros de toda a nossa vida, de tudo o que queremos? Carapito
foi uma desilusão, paragem no tempo. Foi também voltar a escrever, perguntar…
Carapito foi medo do tempo, o cansaço da monotonia. Foi também voltar a ler,
pensar…
O que posso dizer da minha vida
aqui? Ser segunda ou sábado é-me indiferente. A luta contra os minutos, os
segundos, é a mesma todos os dias. Chego ao fim do dia com a sensação de
vitória, de ter derrotado mais doze horas. E no entanto outro dia começa, longo
e penoso, e de novo a alegria quando chega a noite e posso esquecer fugindo no
sono, nos sonhos.
A vida (vida?) repete-se como se
repetem monotonamente as pessoas, as ideias, as conversas. E o tempo torna-se o
fantasma que assombra todos os passos que dou. Eu queria que no fim do pesadelo
fosse minha a vitória sobre o tempo assassino. Eu queria poder dizer: «Agora o
tempo é meu. Derrotei a solidão.» (…)
2. O Dia-a-Dia
O primeiro acordar é estranho.
Os galos cantam. A água corre no
tanque lá fora. Oiço um crepitar irregular para os lados da cozinha.
Levanto-me. Nunca conseguirei habituar-me aos santos, terços, crucifixos e
estatuetas espalhados pelas paredes, arcas e prateleiras. Visto-me. Na cozinha
negra o lume arde e nas panelas de ferro ferve já a água. Cozem-se as batatas
para as galinhas, faz-se a sopa para o almoço.
Durante umas semanas vou
refugiar-me no fogão. Defendo-me com o que conheço e que lembra a civilização. Mas
aos poucos lá me desprendo dos hábitos antigos. Adiro à novidade. Entro na
aventura. Claro que tudo tem a sua arte… acender uma lareira, mover as cavacas
com as tenazes, usar o abanador, pôr lenha a secar enquanto outra arde… Parto
da observação para a acção, e a caminhada começa.
Não há frigorífico (enfim, para
ser mais concreta, não há nada eléctrico na cozinha). Mas há uma despensa muito
fria que faz o mesmo efeito e de Inverno o problema acaba por ser como
descongelar.
Outra coisa que procuro… um caixote
de lixo. Não é preciso. Não há material desperdiçado. Papel e cartão vão atear
o lume; o plástico é lá derretido. Restos de comida vão para o balde das
galinhas. Latas são aproveitadas para guardar arroz, massa, café,… Mesa, não se
põe. Sento-me num banco baixo de madeira junto à lareira, o prato na mão. No
fim, com a água que ferve na panela bem negra, lava-se a loiça que fica a
escorrer num alguidar.
Não há casa de banho. Mas como
vou eu passar um ano sem casa de banho? Como é que esta gente se lava? Como vou
usar estas armações de ferro e esmalte?
As respostas vêm com o tempo. E
tudo acaba afinal por se tornar natural e corriqueiro. Mesmo quando o “esgoto”
passa por abrir a janela e despejar baldes no quintal. Ter o jarro com água no
quarto e usar a bacia de esmalte é já rotina. O banho exige técnica mais
complexa… (…) Com a repetição, o duche passa a ser mais calmo e
bem sucedido. Só encho o balde depois de pendurado. O mecanismo de soltar e
fechar a água funciona. Levo o candeeiro a petróleo para iluminar. Afasto a
cadeira da roupa. Esqueço as aranhas e ratos. Mas há sempre novidade. Oiço um
ruído atrás de mim. Uma galinha passa pelo buraco da porta e olha de lado
aquela cena nunca vista…
Pego no alguidar. Vou lavar ao
tanque. Como será lavar num grande tanque de aldeia? A posição é incómoda. A
roupa pesa e as costas ressentem-se. Largo o sabão, que se afunda no tanque.
Acabou-se a lavagem por hoje. Amanhã será melhor.
E há os dias piores. De repente
tudo parece estranho e agressivo como no primeiro dia. Nada me diz respeito,
nada me responde. Estou isolada. A evolução pára. Recua por vezes. Até ao
momento da fazer outra conquista que me reconcilia com o meio e comigo. Então a
vida continua.
Dominar o quotidiano passa por
tudo isto. Trata-se de sobreviver num meio que não é o nosso. Trata-se de ver e
tentar repetir. Há que adaptar, imaginar, resolver, ultrapassar. Não é assim
afinal que se aprende, que se cresce? Difícil é aprender a solidão. O
afastamento de tudo e de todos. (…)»
PS – No princípio do ano lectivo
seguinte, Maria Helena enviou uma “Carta a Carapito” através do mensário da
povoação (Caruspinus, Ano VI, n.º 38), que se transcreve a seguir:
«Aqui, Tábua. Há um mês
que me instalei começando uma nova vida, numa nova terra, com novas crianças.
Enfim… o processo de todos os anos. E tenho de confessar as saudades de
Carapito e dos meus miúdos de aldeia.
Aqui na Vila, a vida é mais
fácil, claro. Tenho apartamento, uma boa Escola, lojas, cafés, os serviços
administrativos, tudo. Falta-me a paisagem daí; os passeios com as crianças; as
panelas de ferro, o banho na casa das batatas. Falta-me, sobretudo, uma “avó”
Nascimenta que não esqueço.
Aqui há Nádias, Kátias, Dalilas,
todas meninas amorosas e bem vestidas. E eu sinto a falta da simplicidade da
Aninhas e do furacão que era a Ana Maria. Saudades também dos grandes tanques,
da roupa a corar nos lameiros, das conversas de rua.
Percebo agora a importância do
ano que aí passei, e gostaria que entendessem por que não o mostrei mais cedo.
Carapito foi, de início, uma experiência dura. Carapito afastou-me do mar, da
família, dos amigos, de tudo o que eu conhecia e amava. Revoltei-me. Não queria
entender a aldeia. Criticava, condenava. Aos poucos fui aprendendo os hábitos,
as ideias. E essa experiência foi única e muito importante para a minha vida.
Sinto-me hoje uma pessoa diferente, após um ano na vossa aldeia (que foi também
um pouco minha).
Deixo-vos. O meu caminho vai dar
ao mar. Esse é o destino que escolhi. Se Carapito tivesse ondas, ficaria
convosco. Acreditem.»
«(…) uma carta que muito nos
comoveu», dizia o Director do Caruspinus no comentário que escreveu a
propósito desta mensagem.
Não custa a crer.
Nota final - Helena Martinho é Educadora de Infância no
Jardim de Infância do Vimeiro (Lourinhã) desde 2001/2002.
Em próximos posts, seguir-se-ão novos "capítulos" do relatório do Carapito.
Pois, nada como sair do que conhecemos e aprendermos novas maneiras de viver. Num ambiente diferente debato-me ainda um pouco todos os dias com essa realidade a 2.200 km de casa... mas no fim de tudo vale sempre a pena. Só crescemos a sério quando saimos da zona de conforto :-)
ResponderEliminarRecorda-me da preocupação, um pouco dramática da parte dos meus pais, aquando uma visita à neta....coitadinha da minha neta, dizia constantemente a avó Irene....
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