domingo, 7 de outubro de 2012

O Senhor Rivotti

Texto de 
Maria da Piedade Pinheiro Martinho

O meu pai, funcionário da CP, estava destacado na estação dos Riachos (Torres Novas) nos anos 50. A empresa destinava uma casa modesta e pequena para cada família. Éramos cinco: os meus pais e os três filhos (eu, a Rosa Maria e o Adalberto, por ordem decrescente de idades).
Mais tarde chegou a santa tia Aurora, vinda de Lisboa, sem outra família senão a dos sobrinhos do marido, já falecido. Só o nosso pai, com tantas dificuldades, a recebeu…
Pais Irene e David Pinheiro filhos Rosa Maria, Adalberto e Piedade

Embora frequentasse o Liceu de Santarém vivendo em casa da “avó” Jú, irmã do meu pai, eu vinha aos Riachos sempre que possível.
Há dias lembrei-me da casa grande situada do outro lado da estrada, junto à linha do combóio. Naquele grande espaço havia uma fábrica de destilação de álcool. Um dos responsáveis administrativos da empresa vivia com a esposa numa casa localizada dentro do próprio recinto da fábrica. O senhor Rivotti era escriturário. Trabalhava numa ampla sala com mais empregados, junto a uma secretária alta, escrevendo sempre de pé. Era grande e seco de carnes, o senhor Rivotti, homem de poucos sorrisos.
Quando a sua gentil esposa D. Irene pedia à nossa mãe (curiosamente também chamada Irene) que deixasse ir lá a casa as meninas, eu e minha irmã, algo receosas, entrávamos no “santuário” dos vizinhos. O senhor Rivotti ensaiava um gesto de simpatia para connosco e estendia-nos a sua enorme mão, que ele não era dado a beijinhos. Logo de seguida, tirava do bolso um pequeno frasco e limpava as mãos com um pedaço de algodão embebido num líquido. Soubemos depois que era álcool… Só podia ser! Perante a nossa surpresa, a D. Irene explicou-nos depois o hábito do marido. O pequeno frasco “viajava” sempre com ele, pronto para entrar em acção fosse quem fosse que o cumprimentasse.

Sociedade Lusitana de Destilação, Riachos, Torres Novas 
(Fotografia: Estúdio Mário Novais, pós 1944) 

E mais histórias nos contou a D. Irene. O marido saía todas as noites após o jantar, para percorrer alguns quilómetros nas redondezas entre pinhais. E isto acontecia mesmo nas noites invernosas, embrulhado numa capa e munido de chapéu-de-chuva e um revólver, não fosse o diabo tecê-las…
Num dos dias em que a visitámos, a paciente D. Irene lavava freneticamente um frango com sabão azul e branco sob uma torneira deitando água em grande quantidade. Nova explicação: o senhor Rivotti dizia que a pele dos galináceos estava cheia de impurezas. Esta não foi uma história de assustar, mas sim divertida.
Sempre que a D. Irene nos convidava, eu e minha irmã lá íamos curiosas, na expectativa de ouvirmos mais episódios tendo por protagonista o senhor Rivotti. O último de que me lembro, passados cerca de 60 anos, dizia respeito ao quarto onde dormiam os senhores, o qual era desprovido de cortinados ou tapetes. A janela nunca era fechada, fosse verão ou inverno, mesmo em situações de tempestade. A cama da D. Irene ficava junto à janela, e isso obrigava-a a tapar a cabeça com a roupa quando a tempestade surgia acompanhada de trovoada e relâmpagos. Para resolver o problema da chuva sobre a cama da esposa, o senhor Rivotti tapava-a com um oleado, “mais na zona dos pés” – dizia ela.
Terminado o destacamento, o meu pai voltou à estação de origem, em Santarém, onde aliás trabalhou quase sempre. Da família da “fábrica do álcool” nunca mais soube nada. Recordei-a há dias junto do meu companheiro, a quem contei as histórias do senhor Rivotti que tanto me divertiram quando era jovem.


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