sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Voltar à aldeia


Os habitantes de uma aldeia conhecem-se pelo rosto mas também pelas costas, pelo jeito de andar, pelo timbre da voz e, muitas vezes, até pela roupa. Hoje, como ontem, nas aldeias do interior as pessoas cumprimentam-se com o olhar, breves resmungos e caras sem vergonha. Mas daí a pouco, na taberna, no café ou na mercearia, já se riem e trocam afectos, e falam dos filhos e dos problemas caseiros como falariam com os mais íntimos da família.
 Na aldeia as pessoas abraçam-se no meio da rua para se cumprimentarem em situações especiais de lamento pela perda de um familiar; numa situação de doença; pela alegria de alguém que anunciou uma gravidez; que vai casar; que conseguiu o emprego da sua vida ou a casa dos seus sonhos.
Não tenho facebook, nem vou ter, porque gosto de ser do contra e tenho horror a modas e exposição demasiada. Para mim a melhor rede social é sair à rua e usar esta cara de pau que Deus me deu mas também este sorriso e esta alegria que é viver a duzentos à hora sem paragens nem interrupções.
Numa destas manhãs frias e ventosas, em que o sol aquece como uma lareira as ruas pouco movimentadas da minha terra, encontrei a dona Lourdes e dei-lhe um abraço que ela logo entendeu como os pêsames pela morte recente do marido.
Ficamos ali, primeiro no meio da rua, depois na esquina, dez ou quinze minutos a falar de outros tempos e das mil recordações que povoam a nossa memória.
E, como no fim tudo são borras, a dona Lourdes contou coisas que parecem mentira e, no entanto, passaram há tão pouco tempo, e algumas delas foram de tal modo vividas e sofridas que até se estranha como se esquecem tão depressa.
O meu marido chegou a percorrer de bicicleta 60 km todos os dias para ir e vir do trabalho; não podia chegar cinco minutos atrasado porque isso seria motivo de vergonha perante o patrão e razão para despedimento; às vezes não tinha luz na bicicleta e fazia o caminho sempre de noite, tudo isto durante mais de três anos, ou 30 anos, se contarmos outros caminhos e fizermos a conta a outras distâncias percorridas depois das habituais 10 horas de trabalho.
O Manuel “Travessa” era o pintor que há mais de trinta anos disputava com o Joaquim Pimpão o lugar de melhor profissional da Chamusca; e foi ele, com o Jorge “Faca”, que há três décadas pintou a minha casa nova comprada quando não havia dinheiro nem fiadores. Morreu recentemente. Pelo que me lembro dele deve ter morrido a trabalhar já que era o que mais sabia fazer. A dona Lourdes diz que ele morreu em grande sofrimento mas é claro que, para mim, ele morreu como eu ainda me lembro dele: em cima da escada a dizer-me que a minha casa ia ficar um mimo, e que eu era um tipo com sorte por ter uma casa no meio da vila que mais parecia a moradia de um homem abastado, enquanto, de verdade, eu não passava de um jovem e pobre rapaz filho do Eugénio Emídio.

Joaquim António Emídio
Jornal O MIRANTE, 10.Fev.2012 


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