Uma nuvem de som caótico paira sobre o palco enquanto os instrumentistas da orquestra praticam os seus diferentes papéis antecipando o início do ensaio. Quando o Maestro ergue a sua mão, há um momento de silêncio. Então começa a magia – das centenas de instrumentos sai um som único, límpido e poderoso. Comandado pelo Maestro silencioso, cada músico toca em harmonia perfeita, trabalhando no sentido da meta comum: uma performance magnífica.
Maestro Itay Talgam
O Educador é um privilegiado. Partilha, talvez apenas com o Artista, a possibilidade de fazer uso, na sua profissão, de todos os domínios do conhecimento e de todas as formas de arte e cultura. Quantas vezes a inspiração nasce de um inesperado fenómeno físico, de um bailado, cena de filme, ilustração de livro… Tudo nos serve para construir, desconstruir e reconstruir ideais e caminhos.
Por isso, esta reflexão hoje se inicia pela mão inspirada do proeminente maestro israelita Itay Talgam, Director Musical da Orquestra Sinfónica de Tel-Aviv.
Aquando da sua brilhante comunicação sobre liderança no programa Ted Talks: “Lead like the great conductors”, em Julho de 2009, comentava ele sobre a alegria contagiante de um maestro dirigindo a Orquestra Filarmónica de Viena: «(…) de onde vem esta alegria? Não será só da história do maestro… mas sim do facto de este possibilitar que as histórias de outras pessoas possam ser escutadas em uníssono. Porque há a história da orquestra, dos músicos… mas também do público como comunidade… e temos as histórias dos indivíduos da orquestra e do público. E ainda outras histórias invisíveis: a história das pessoas que construíram a sala de espectáculos, dos artífices que construíram os belíssimos instrumentos. Esta é a verdadeira experiência de um concerto ao vivo (…)».
Dei por mim a pensar em como esta imagem de liderança se aplicava tão claramente ao papel do Educador que pretende fazer da “Escola” um espaço construtor de cultura. Agrada-me a ideia do Educador como um maestro que potencia e rentabiliza os diversos saberes e culturas (de crianças, equipa do Jardim, familiares, comunidade, entidades…) em prol de uma visão de Educação e da construção de um Projecto de qualidade distinta e inconfundível.
Esta reflexão faz-me regressar a um belíssimo pensamento – ou, seria melhor dizer, “declaração de intenções” – do grande mentor da Experiência de Pré-Escolar de Reggio Emilia, Loris Malaguzzi: “A transparência interactiva é um sonho nosso”.
No documento “Uma carta para três direitos”, este pedagogo refere claramente o direito das crianças a serem «construtoras da sua própria cultura e, portanto, participantes activas na organização da sua identidade, autonomia e competência, através do relacionamento e interacção com os pares, os adultos, as ideias, as coisas, os sucessos reais e imaginários do mundo comunicante». Para os pais defende o direito de participação e pesquisa e para a escola uma cultura de colaboração que ruma no sentido inverso de uma pedagogia de “receitas” geradora de vivências despidas de sentido. Só assim se torna possível concretizar um dos princípios pedagógicos que a experiência de Reggio Emilia adoptou, mas que deveria ser universal: «a ampliação do acto educativo para um plano cultural mais vasto, imerso na cultura do nosso tempo.»
Cada Jardim de Infância – eu diria mesmo cada grupo de Jardim – tem que ter uma visão única, um perfil estético, poético, científico e cultural específico. Procurando uma imagem plástica, diria que tem que ter uma cor… ou antes, uma paleta de cores única. Ninguém discordará deste princípio…mas, se a prática assim o comprovasse, como seria possível encontrar as vivências estereotipadas que, apesar de tudo, ainda hoje persistem em muitas instituições?
Outras perguntas fariam sentido… Como manter uma cultura de grupo numa época em que, erradamente, no domínio da educação, se tende para o formato “industrial”? Será possível que uma cultura de grupo possa sobreviver em mega-instituições onde coexistem tantas visões de Educação quantos os Educadores? Será viável criar uma cultura de Escola/Instituição sem massificar as visões de futuro e o que faz sentido para cada Educador? Teremos a capacidade reflexiva suficiente e a coragem necessária para equacionar tudo isto?
Ficam as questões. De uma coisa estou certa: o ambiente desejável será, por si só, uma autêntica escola de desenvolvimento pessoal e social para as crianças envolvidas. Crescerão com a noção clara da riqueza da diversidade, do diálogo reflexivo e da partilha. Ficarão preparadas para perceber a importância de uma liderança criativa assim como para estranhar formas de autoritarismo. Entenderão, por dentro, a forma de transformar o real a partir do cruzamento de culturas.
Rumarão à transparência interactiva recordando, aqui e além, uma batuta invisível e silenciosa que fazia a diferença na sua infância.
Helena Martinho
Artigo publicado na revista
Cadernos de Educação de Infância
Cadernos de Educação de Infância
da APEI, N.º 93, Maio-Agosto.2011
Ilustração (fotos pela ordem apresentada):