Escrevi-lhe sobre o assunto. Conhecendo-me como me conhece, fiquei na expectativa. Não foi em vão que aguardei pela sua opinião. Ei-la:
O tema que te propões abordar – melhor dizendo, que o director de O Mirante te propôs para o número comemorativo do quinto aniversário do jornal, de reflexão pessoal sobre a escrita – é bastante delicado. Acredito que tenhas hesitado ao aceitar o desafio. Em primeiro lugar, porque decerto sentes que não tens nada de novo ou de importante para dizer sobre essa matéria, e corres o risco de rapidamente cair em lugares-comuns. Em segundo lugar, porque falar sobre o acto de escrever corresponde, no teu caso, a teres de reconhecer dificuldades e limitações pessoais que ninguém gosta de confessar na praça pública. Ao confessares-te, expões-te, e ficas vulnerável. Lembra-te que, ainda há dias, levaste uma dezena de horas para preparar um memorando de duas páginas...
Bem sei que escreveste mais de duas dezenas de textos para a revista Chamusca Ilustrada e quase quarenta artigos para O Mirante, e que a essa experiência estão associadas “dores de parto” que interessaria partilhar, sobretudo com os mais novos, para lhes fortalecer o ânimo quando começam a duvidar da sua capacidade para manejar a pena perante uma folha escrita de que aproveitam apenas duas ou três linhas. Mas como vais explicar isso às pessoas?
Como vais explicar as hesitações na escolha dos títulos dos artigos? Como vais convencer alguém das pesquisas que fazes sobre a adequação do significado das palavras que utilizas? Como vais fazer compreender ao leitor as insistências a que te obrigas com as frases que tardam a encaixar-se no “puzzle” final que é o texto, com a clareza necessária, a simplicidade exigível, o ritmo desejado, num todo que se pretende, sempre e cada vez mais, harmonioso e interessante? Como vais conseguir isso?
A meu ver, só tens uma saída. Socorre-te de Carlos Amaro, prestigiado chamusquense autor de São João Subiu ao Trono, como sabes. Ele escreveu sobre esse tipo de angústias, citando nomes grandes. Quem te ler (e se te ler... que eu sei que também tens esse tipo de dúvida), poderá reconhecer que estás a ser honesto no que escreveres. Recomendo-te que transcrevas as seguintes frases do teu conterrâneo, como se fosses tu a questionar o leitor:
Acaso nunca ouviu falar de um tal Flaubert que se sentia louco de contentamento, por ter escrito, em dois meses, seis páginas que o satisfaziam?
Pois não sabe que ao fecundíssimo Zola nunca um livro lhe levou menos de um ano, à razão de oito horas por dia?
Não sabe que há uma página de Oliveira Martins na História de Portugal que custou vinte e quatro horas seguidas de contínuo esforço e não sei quantos litros de café?
Não sabe que qualquer poesia do simples, natural, espontâneo João de Deus, lhe gastava dias e meses de cuidados de emendas, de substituições?
Tudo pode resumir-se naquela frase, não sei se de Anatole se por ele citada: O tempo só respeita as Obras em que longamente colaborou. E se não foi aquele mesmo senhor foi Pascal que disse: O Génio é uma longa paciência.
Texto publicado no jornal O Mirante, 24.Novembro.1992
Carlos Amaro de Miranda e Silva, poeta, dramaturgo, jornalista e político republicano, nasceu na vila da Chamusca em 22 de Agosto de 1879, tendo falecido em Lisboa com sessenta e seis anos, mais precisamente em 8 de Julho de 1946.
Fez o curso liceal em Santarém, frequentando seguidamente a Escola de Agronomia de Lisboa, curso que foi forçado a abandonar em 1896, por ter sido preso na cadeia do Limoeiro, com outros estudantes republicanos, por motivos políticos. Mais tarde, vem a matricular-se na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, onde conclui o curso em 1907. Foi um dos fundadores do Clube dos Estudantes Republicanos José Falcão, de que foi também presidente. Fundou e colaborou no jornal académico A Pátria, que se publicava em Coimbra.
Posteriormente, fixa-se em Lisboa tomando parte activa na divulgação das ideias republicanas. Proclamada a República, é eleito deputado às Constituintes. Veio a ser militante do Partido Unionista.
Colaborou em diversos jornais, entre os quais, A Luta, República e Capital, sendo a sua última colaboração conhecida, no Diário de Lisboa, usando o pseudónimo de Frei Carlos. Considerado poeta delicado, escreveu Castelos em Espanha, ensaio, e as peças Cena Antiga e Entre Dois Beijos, representada em Coimbra, São João subiu ao Trono, em três actos, representada em Lisboa e Cabra Cega, estreada em Setembro de 1935. Desempenhou o lugar de Conservador do Registo Civil do 3.º Bairro de Lisboa. Foi ainda crítico de Arte e de Teatro e colaborador da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira.
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