sexta-feira, 16 de março de 2012

Fukushima, o teste nuclear da Europa

«Vista da Europa, a irracionalidade do discurso político e dos meios de comunicação social sobre a energia nuclear tem vindo a aumentar e a intensificar-se durante o ano, desde o acidente na central nuclear de Fukushima, perto de Daiichi, no Japão. No entanto, uma avaliação imparcial do lugar da energia nuclear no mundo continua a ser uma necessidade e um desafio.
Os europeus não devem pontificar sobre política de energia nuclear como se a nossa opinião fosse importante em todo o mundo, mas fazemo-lo. Por outro lado, a Europa tem uma responsabilidade qualificada na área da segurança, onde ainda podemos promover um quadro internacional regulamentar e institucional que discipline os estados e que seja mais transparente no que diz respeito aos riscos globais, como a energia nuclear.
A Europa é igualmente responsável pelo progresso na investigação sobre tecnologias mais seguras, nomeadamente uma quarta geração de tecnologia de reactores nucleares. Nós os europeus, não nos podemos dar ao luxo de desmantelar um sector industrial de elevado valor acrescentado, no qual ainda temos uma verdadeira vantagem comparativa.

Na Europa, Fukushima originou nos meios de comunicação uma campanha massiva de calamidade e desgraça sobre energia nuclear. A revista alemã Der Spiegel anunciou o "11 de Setembro da indústria nuclear" e "o fim da era nuclear", enquanto o prestigiado jornal espanhol El Pais preconizou que apoiar "esta energia [era] irracional" e que "a China moderou as suas ambições nucleares." Mas a realidade provou que estas avaliações são tão tendenciosas quanto irremediavelmente erradas.
Na verdade, alguns países – Bélgica, Itália, Alemanha e Suíça, sendo o Perú o único país não europeu a aderir – declararam formalmente a sua intenção de eliminar ou de evitar energia nuclear. Essas decisões afectam um total de 26 reactores, enquanto existem 61 reactores em construção a nível mundial, 156 projectados e 343 em apreciação oficial. Se estes planos forem concretizados, o número de reactores em funcionamento, actualmente 437, irá duplicar.
Mas, mais interessante, o boom nuclear não é mundial: O Brasil está na vanguarda na América Latina, enquanto o desenvolvimento mais rápido está a ocorrer na Ásia, principalmente na China e na Índia. Se compararmos esta distribuição geográfica com um retrato global das instalações nucleares anterior à fusão nuclear de Three Mile Island nos Estados Unidos em 1979, surge uma correlação surpreendente entre a política de energia nuclear dos países e a sua posição geopolítica e vigor económico.
Enquanto o desejo por reactores na década de 1970 reflectiu o peso internacional da União Soviética, principalmente o do Ocidente geopolítico (Japão, EUA e Europa), hoje, o centro de gravidade deslocou-se irrevogavelmente para o Oriente, onde a energia nuclear se tornou um "portal para um futuro próspero", nas palavras certeiras de um comentário publicado em Novembro de 2011 no jornal The Hindu. Na verdade, ao concordar com esse ponto de vista, o presidente dos EUA, Barack Obama, apostou de forma audaciosa que as garantias de empréstimos e a investigação para a criação de pequenos reactores modulares vai reconfirmar a posição global dos Estados Unidos na vanguarda da tecnologia nuclear civil e a sua relevância na nova ordem global.
A energia é, obviamente, a força vital de qualquer sociedade, reflectida na correlação entre a procura de energia e as receitas. A este respeito, as vantagens da energia nuclear destacam-se, particularmente a sua credibilidade e os seus custos previsíveis. A Agência Internacional de Energia na sua publicação World Energy Outlook de 2010 prevê um aumento de 40% na procura global de energia em 2030 – uma realidade implacável, sentida de forma mais tangível nos países em desenvolvimento, particularmente na Ásia.
Assim sendo, a expansão da energia nuclear é, e continuará a ser, um facto. Para agir de forma responsável, os europeus devem trabalhar para melhorar as normas internacionais de segurança para a energia nuclear e não optar por sair do jogo. A verdadeira lição de Fukushima é a de que é necessário o controlo por parte dos estados, mas este não é suficiente para garantir a segurança nuclear.

Infelizmente, no ano passado, uma proposta na Agência Internacional de Energia Atómica que visava o lançamento de um sistema eficaz de controlo internacional sobre a segurança da energia nuclear em todo o mundo chumbou arbitrariamente com a aquiescência da União Europeia. Pior ainda, com o apoio europeu o orçamento da AIEA, que já era de apenas € 300 milhões, foi reduzido em quase 10%.
Neste contexto, foi diluída uma iniciativa para impor inspecções aleatórias da AIEA a 10% dos reactores mundiais em operação no prazo de três anos, mais uma vez com o apoio activo da UE, alegando que a responsabilidade pela segurança e inspecções caberá primeiramente aos Estados-membros. Apenas uma parca disposição que tornava voluntárias as inspecções conjuntas da AIEA chegou a acordo final. Quanto à própria UE, o debate e a formulação final dos testes "voluntários" de esforço, concretamente denominados "tempestade" pelo primeiro-ministro polaco Donald Tusk, revelaram um enorme leque de deficiências e pontos fracos.
Talvez a contradição mais flagrante no discurso nuclear da Europa seja a discrepância entre o esforço aparente para estimular o crescimento económico e o emprego, e a leveza dos Estados membros em abandonar a indústria nuclear, que depende das competências a nível de projecto, engenharia e de comando e controlo que fundamentam a vantagem comparativa da Europa na indústria.
Podemos considerar como uma excepção animadora o recente acordo entre o Reino Unido e a França para estabelecer uma aliança de fabrico entre a Rolls Royce e a Areva em termos de tecnologia nuclear. Mas não deviam ser apenas estas. Será razoável que os países da Europa desistam de um nicho de prosperidade tendo por base ideologias que são irrelevantes do ponto de vista global?
A ascensão da energia nuclear na Europa igualou a sua proeza económica do pós-guerra. Coincidiu com o ponto alto da crença do Ocidente na sua força económica crescente e na sua perpétua supremacia global. Actualmente, com a Europa cada vez mais vista como "o doente" da economia mundial, mesmo a renúncia de todo o continente à energia nuclear teria pouca ou nenhuma repercussão no cenário mundial. A Europa já não tem a função de ditar a direcção do discurso político. Mas tem-na relativamente ao comportamento responsável.»

Ana Palacio
Ex-ministra dos Negócios Estrangeiros de Espanha e
ex-vice-presidente e conselheira geral do Banco Mundial
Artigo publicado no jornal PÚBLICO, 14.Março.2012

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