Assisti recentemente a um seminário intitulado “Urânio, um elemento químico com futuro”, em que, como se percebe, foi feita uma abordagem prospectiva de aplicações e pesquisas diversas em que o urânio tem, ou pode vir ter, um papel relevante na resolução de problemas com interesse técnico-científico, económico e social. O seminário incluiu um debate final, que acabou por centrar-se sobre o ensino das ciências e técnicas nucleares em Portugal.
Sobre o tema do debate, importa dizer que o ensino das matérias em causa – que têm a ver, em particular, com a Física das Radiações e a Radioquímica – é muito incipiente, para não dizer praticamente inexistente. Ao nível do ensino básico, há apenas [em 2001] uma unidade temática na disciplina de Físico-Químicas do 9.º ano (Radiações e Ambiente), a qual tem carácter opcional, isto é, pode ser dada ou não (e raramente o é). Isto significa que os alunos podem terminar a escolaridade obrigatória sem terem efectuado qualquer aprendizagem nesta área científica.
Ao nível do ensino secundário e mesmo do ensino superior, o panorama é semelhante. A experiência de contacto com recém-licenciados em ciências exactas e engenharia, leva a concluir que os jovens saem da Universidade num estado de evidente ignorância em relação às ciências e técnicas nucleares, um dos domínios mais relevantes do século XX e que mantém toda a sua actualidade. Não surpreende, pois, que o cidadão comum desconheça absolutamente estas matérias e, por isso, fique à mercê das opiniões que lhe queiram transmitir, as quais podem ser mais ou menos isentas.
Esta situação é tanto mais paradoxal quanto é certo que quase tudo o que tem a ver com radiações nucleares é assunto noticioso de que a comunicação social se faz eco com ênfase. Basta pensar no caso do radão em certo tipo de habitações; no problema do urânio empobrecido nos Balcãs; nos submarinos nucleares que passam por portos portugueses; no transporte de materiais nucleares ao largo da costa portuguesa; no transporte de resíduos radioactivos entre países; na repercussão de incidentes ocorridos em centrais nucleares; na maneira como o nuclear (não) é tido em conta quando se discutem as alterações climáticas globais resultantes da emissão de gases com efeito de estufa, etc. Na abordagem destes assuntos, geralmente impera mais a emoção decorrente do desconhecimento do que a razão associada ao conhecimento. Isto acontece precisamente porque o analfabetismo científico não deixa ver mais longe e com mais objectividade.
E é assim que, com grande “naturalidade”, podem surgir perguntas descabidas donde menos se espera. Durante o debate no referido seminário, um dos presentes fez uma curta intervenção, que culminou com uma pergunta. No essencial, disse o seguinte: “Sou química de formação, mas sei pouco sobre o urânio. Por isso vim a este seminário e aprendi bastante. Esperava, porém, ouvir falar de outros aspectos, alguns dos quais têm sido muito focados ultimamente. Por exemplo, esperava ouvir falar da toxicidade do urânio. Afinal, o urânio é perigoso ou não?”.
O urânio é perigoso ou não?! Como? Importa-se de repetir? É que – apesar de a pergunta ter tido um intróito –, posta a questão sob esta forma dicotómica, não se pode responder “Sim!” nem se pode responder “Não!”, porque qualquer das respostas seria errónea. A pergunta poderia talvez ter como resposta um insípido “Depende…”, mas este é o tipo de resposta que nada esclarece ou adianta – pior do que isso, no caso em apreço poderia ser interpretada como uma artimanha para “fugir” à questão. Em última análise, como se compreende facilmente, faz tanto sentido perguntar: “O urânio é perigoso ou não?” como perguntar, por exemplo: “O vinho é perigoso ou não?”.
Ao ouvir a referida pergunta, lembrei-me de uma pergunta análoga que me é feita com frequência por alunos do ensino secundário: As radiações são perigosas ou não? E, sobretudo, lembrei-me de um pensamento do professor Agostinho da Silva, que cito de memória: Nas nossas escolas os alunos aprendem a dar respostas, mas mais importante seria ensiná-los a fazer perguntas!
À primeira vista, pode parecer bizarro que uma pessoa com um curso superior faça perguntas como se de um aluno do ensino secundário se tratasse. Mas, pensando melhor, o facto nada tem de estranho. É que, para além de os programas curriculares serem omissos em matérias relevantes, os alunos são ensinados da mesma maneira, de acordo com o mesmo figurino, desde o primeiro ciclo do ensino básico até ao ensino superior. No fundo, é como diz Agostinho da Silva: ao longo da vida escolar, os alunos só aprendem a dar respostas. Fazer boas perguntas – perguntas lógicas, pertinentes –, pressupõe conhecimento do assunto e capacidade de reflexão crítica. E é isto que não existe, porque não se ensina nas nossas escolas.
Através de uma pergunta, pode-se avaliar quem a fez. Em consequência, atrevo-me a sugerir aos professores mais atentos que experimentem realizar testes em que, em vez de pedirem aos seus alunos que dêem respostas a perguntas, lhes peçam para formular as perguntas correspondentes a determinadas respostas. O resultado será certamente esclarecedor e, porventura, estimulante.
Não é por acaso que o ensino em Portugal é o que é. Nem é por acaso que a iliteracia dos portugueses é tão grande. Por razões diversas, julgo que o futuro do País passa por aprendermos a fazer (boas) perguntas. A todos os níveis e em todas as circunstâncias. E a toda a gente, a começar por nós próprios...
Artigo publicado no jornal O MIRANTE, 12.Abril.2001