Bárbara Wong (PÚBLICO, 10.Junho.2018)
A minha mãe é portuguesa. Alfacinha de gema, filha de
lisboetas, neta de beirões, da Beira Alta e da Beira Baixa, bisneta e trineta
de descendentes de judeus (sabem que os judeus quando perseguidos foram
esconder-se para aqueles lados?) e de africanos, do Norte de África (não é por
acaso que a Mouraria se chama Mouraria, também sabem disto?). A minha mãe portuguesa
casou-se com o meu pai chinês, raça pura, amarelo de gema.
A minha mãe podia ter-se casado com um alemão, com um
guineense, com um israelita, com um coreano, com um argentino — a universidade
onde estudou tinha gente de todo o lado —, mas casou-se com o meu pai, com quem
aterrou na Portela no início da década de 1970. O pai da minha mãe não gostou,
sempre o tratou por “senhor engenheiro”; a minha avó adorava-o e chamava-o pelo
seu nome.
Crescer numa altura em que havia apenas dois canais de
televisão — um deles só começava a funcionar a meio da tarde —, não havia
Internet e pouquíssimos portugueses tinham saído da sua terra, não foi fácil.
Não me esqueço de um domingo, a seguir à missa, numa terreola qualquer perdida
no centro do país, de os miúdos da nossa idade nos virem tocar, a mim e aos
meus irmãos, para confirmarem que éramos reais.
As pessoas ficarem a olhar para nós e a comentar, como se
não as víssemos nem as ouvíssemos, era constrangedor e, à medida que fomos
crescendo, cada um foi criando a sua carapaça, lidando com a coisa da melhor
maneira que sabia. Na minha adolescência não se falava de bullying, mas não
tenho dúvidas de que fui vítima de violência verbal e psicológica sistemática.
Sempre relativizei as bocas, os empurrões, os bilhetinhos anónimos, porque se
não fosse por ser chinesa, seria por ser bem-comportada, por me vestir de uma
maneira estranha, por me chamar Bárbara no tempo das Carlas, das Paulas e das
Sandras, ou, simplesmente, porque sim. Isso acontece a todos os que são diferentes,
não é?
Tive a “sorte” de ser pouco chinesa. Costumo dizer que a
raça se foi aperfeiçoando à medida que os meus irmãos foram nascendo. Eu sou
amarela e pequena, mas tenho os olhos e o nariz grandes; o meu irmão é alto e
de tez clara, só o feitio dos olhos esverdeados o denunciam; segue-se a minha
irmã do meio, que poderia ser tailandesa, e, por fim, a mais nova é chinesa,
chinesa, ninguém dirá que a sua mãe é portuguesa senão pelo tamanho das suas
ancas. Depois do 3.º ciclo nunca mais ouvi uma boca, já a minha irmã ouve
expressões como: “Volta para a tua terra.” Palavras que também os portugueses
de origem africana ouvem.
Numa noite de Santos Populares caminhava de braço dado
com a minha irmã do meio e, de repente, levamos um empurrão de duas raparigas,
umas africanas elegantíssimas, que nos olharam e cuspiram um “chinesas...” com
desdém. Desarmámo-las com uma gargalhada, não podemos deixar de nos rir, as
duas, pelo ridículo da situação, e comentámos: Não sofrerão do mesmo? Por que
não há solidariedade racial?
Hoje lembro-me de que tenho origem chinesa — na verdade,
é só um nome, porque não conheço a língua, a história ou a cultura, uma opção
parental — quando entro num táxi, em trabalho, e o meu nome lá está, Wong,
escarrapachado no ecrã. “Yung, Oom, Vongue, Yang, como é que isto se diz...
onde é que foi buscar um nome destes? É casada com um chinês? É chinesa? Não é
nada! Você é bonita e elas são tão feias...” Quando vou mais aborrecida, sou
capaz de responder torto, olho para o cartão de identificação do taxista e
digo-lhe: “Por acaso perguntei-lhe por que é que se chama Silva?” Outras, ponho
a cassete, tal como faço com os professores doutores que vou entrevistar e que
me perguntam o mesmo: “Naquele tempo ainda não havia Erasmus, mas a minha mãe
foi estudar engenharia química para a Alemanha e conheceu o meu pai na
universidade.”
Gostava de dizer que o racismo não existe, que os brancos
não são racistas, que os negros não são racistas, que os amarelos não são
racistas, que o que se passou na Feira do Livro de Lisboa (uma voluntária da feira interrompeu um
debate sobre racismo, onde os convidados eram todos negros) não é sintomático
do que nós somos — racistas. Nos momentos mais dramáticos do meu crescimento,
porque a adolescência é um drama, perguntava em lágrimas à minha mãe: “Por que
é que te casaste com um chinês?”, e a resposta era óbvia: “Porque amo o teu
pai.” Eu achava-a tão egoísta. “Como é que não foste capaz de pensar em nós?”,
e virava-lhe as costas de maneira teatral. Hoje, consigo compreender que o amor
pode ser a resposta para tudo na vida, até para o racismo.
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