Miguel Esteves Cardoso (PÚBLICO, 16 de Junho de 2018)
Foi estranho o que aconteceu ao tempo durante o livre de
Cristiano Ronaldo. Parou. Mas abriu só o suficiente para entrar a bola na
baliza.
Foi como observar um pensamento ou um sonho de um rapaz
pequeno. Estava lá a eternidade. Estava lá a ilha da Madeira. O guarda-redes
ficou preso à trajectória. Todo o mundo parou. Só a bola foi autorizada a mexer-se.
Visto em directo, o golo de Cristiano Ronaldo parecia já
uma repetição, em câmara lenta, de um livre muito antigo que se estuda nas
universidades muito lá para o futuro, quando já estivermos todos mortos.
A bola seguiu o caminho desejado em todos os nossos
inconscientes, curvando como a linha feita por um dedo a escrever o nome num
vidro embaciado.
O golo interrompeu o jogo que era um vaivém de esforços e
sortes e vinganças. Disse que estava farto de pressas e de incertezas e de
medos. Fez com que um empate soubesse a derrota, fez com que um empate soubesse
a vitória.
O livre de Cristiano Ronaldo foi um jogo à parte. Foi
jogado contra a ideia que contra a Espanha ele não marcava golos. Foi jogado contra
a ideia que ele já não era quem tinha sido. Foi jogado contra a noção que à
Espanha ninguém marca três golos.
Foi um livre como música. Tocada por Miles Davis. Ou um
gatafunho de Picasso a completar a única pomba do mundo. Foi um golo para
espantar toda a gente menos o próprio marcador. Por uma vez a coisa correu como
ele quis: a vontade e a realidade desistiram de andar à pancada uma com a
outra. Assim
se abriu uma brecha no tempo.
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