quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Em tempo de seca, a crónica hoje mete água

Em Maio de 1995 escrevi um texto intitulado “A crónica hoje mete água”, que foi publicado no semanário O MIRANTE. Numa altura em que Portugal se debate com uma situação de seca extrema ou severa, e há recomendações no sentido de se poupar o bem comum que é a água, pareceu-me oportuno retomar dois parágrafos desse texto.

A água é um bem essencial à vida das sociedades humanas. Toda a gente sabe isso, dir-se-á. Não tenho a certeza de que seja assim. Duvido que tenhamos plena consciência do privilégio que constitui abrir uma torneira e ver correr a água de que necessitamos. Duvido que sintamos verdadeiramente o imperativo de que tudo deve ser feito, aos diversos níveis de responsabilidade, para preservar e gerir da melhor maneira os recursos hídricos disponíveis, que são escassos. Só assim se compreende, por exemplo, que haja quem desperdice água insensatamente; quem polua irresponsavelmente os rios; quem não se preocupe com a armazenagem controlada dos resíduos perigosos e, com isso, ponha em causa reservatórios de água; quem ponha os campos de golfe acima dos campos de cultivo; quem ponha o betão acima das pessoas. 


É preciso ter a noção de que, no mundo, milhões de seres vivos morrem à míngua de água, que há povos que lutam pela sua posse. E mais: que este cenário tende a agravar-se no futuro próximo, em ritmo acelerado. A água será «o petróleo do século XXI», como alguém já lhe chamou, um factor estratégico de riqueza e bem-estar. E não vale a pena invocar as supostamente tranquilizadoras relações de boa vizinhança, seja entre pessoas ou países. Nem vale a pena, se não mudarmos de mentalidade e de filosofia de vida, falar de solidariedade. Este conceito é bom para tranquilizar a má consciência. É fácil falar de solidariedade, quando não sentimos na carne necessidades vitais. Na hora do aperto, será o salve-se quem puder. E isto não se passa apenas com os “outros”. Aqui bem perto, no ressequido Alentejo, um recente gesto de solidariedade suscitou logo reacções primárias de sentido contrário. Parafraseando a fala cínica de um personagem do filme “O regresso a Howards End”, estamos a caminho de sentenciar o seguinte: «Os carenciados de água existem não para que os ajudemos, mas para que possamos ter pena deles»!

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