quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Neutrão, meu improvável Elemento

O neutrão foi descoberto em Inglaterra quatro anos antes de eu nascer. Quando a cisão nuclear foi descoberta na Alemanha, tinha eu pouco mais de dois anos. O primeiro reactor nuclear funcionou nos Estados Unidos da América três anos depois.  


Nessa altura eu vivia no Ribatejo, mais precisamente na Chamusca, nascido de uma família humilde. A minha mãe era empregada em casa dos Tavares e o meu pai trabalhava na padaria do senhor Samouco. Eu acompanhava a minha mãe e brincava o tempo todo. Mais tarde, comecei a aprender as primeiras letras no improvisado pré-escolar que funcionava em casa da D. Gualdina. Essa iniciação permitiu que eu entrasse directamente na 2.ª classe da escola primária, onde tive como mestre o saudoso professor Filipe Baptista. Recordo-me que foi na padaria do senhor Samouco, com o meu Pai ao lado amassando o pão, que consegui ler sozinho as primeiras palavras num velho jornal. Foi uma revelação marcante.

É claro que nesse tempo nunca tinha ouvido falar de neutrões, nem de cisão nuclear ou reactores nucleares. Um dos primeiros temas de conversa de que me lembro era sobre as peripécias relacionadas com a II Guerra Mundial. Em certas noites apagavam-se todas as luzes e protegiam-se as vidraças para prevenir os efeitos de um eventual ataque (do inimigo, presumia eu, sem perceber o significado daqueles cuidados). O racionamento obrigava-nos a adoçar o café com rebuçados ou com mel, e utilizávamos senhas para comprar certos bens alimentares. Para nos aquecermos nas noites frias, quando faltava o carvão, era serradura que púnhamos no fogareiro disposta ao redor de um buraco: era com curiosidade que via a serradura arder lentamente, avivada pelo ar que entrava por baixo. Nessa época de racionamento percebi que quem tinha dinheiro sofria menos com a crise...

Nestas circunstâncias, quem poderia prever que a minha actividade futura seria precisamente em domínios em que o neutrão, a cisão nuclear e os reactores nucleares estão presentes?

Teria eu uns 13 ou 14 anos quando alguém, certamente com razão para estar indisposto comigo, me disse abruptamente e com ar convicto: Tu nunca serás nada na vida! Foi uma afirmação demasiado forte para o miúdo que eu era… Impressionado, fiquei a pensar naquilo durante uns tempos. Mas, como é sabido, a vida é feita de acasos, e, por acaso, aconteceu tudo o que era necessário acontecer para que aquela “profecia” não se concretizasse [cf.aqui].

Aconteceu até que o Reactor Português de Investigação, instalado no Laboratório Nuclear de Sacavém [cf.aqui], funcionou pela primeira vez em Abril de 1961, precisamente o ano em que concluí a licenciatura na Faculdade de Ciências de Lisboa. Convidado para o efeito, foi aí que logo iniciei a minha carreira profissional, a qual só terminaria mais de 40 anos depois.

Toda a vida trabalhei com neutrões, mas nunca vi nenhum… Isso não impediu que “sonhasse” com eles ao longo do tempo em diversas situações. Houve experiências desafiantes, noites mal dormidas cogitando soluções, resultados frustrantes mas, felizmente, ideias estimulantes e realizações gratificantes. A finalizar a carreira, tive até a sorte de participar numa descoberta relevante no âmbito da Física das Radiações de Reactores Nucleares [cf.aqui], descoberta que tem feito um interessante caminho a nível internacional [cf.aqui].

Não tenho motivos de queixa da “vida”, bem pelo contrário. Contra tudo o que era previsível na minha infância, acabei por encontrar no neutrão o meu improvável Elemento – na acepção de Ken Robinson [cf.aqui].

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