domingo, 25 de setembro de 2011

Ponto Material... como definir este conceito?

A presente entrada tem uma justificação bastante prosaica: estando eu a arrumar papéis, descobri missivas de que já não me lembrava e que me fizeram avivar recordações a que atribuí alguma importância. E como estamos em “tempo de recordar”… recordemos.


Leccionei Física, durante alguns anos, na Faculdade de Ciências de Lisboa: 
http://tempoderecordar-edmartinho.blogspot.com/2010/10/percurso-de-vida-visto-de-relance.html . Duas das disciplinas de que fui encarregado a partir de certa altura foram a Mecânica Geral e a Mecânica Física, que eram ministradas no segundo semestre do primeiro ano. Tinha então o hábito de, na aula de apresentação, fazer três ou quatro perguntas de resposta breve a que os alunos deviam responder por escrito. O objectivo era ter uma noção do “estado” em que os alunos se encontravam no tocante a questões básicas de Física e de Matemática.
Uma das perguntas era esta: O que entende por ponto material? Na primeira vez que fiz esta experiência fiquei surpreendido com as respostas. Julgava eu (novato!) que os alunos não teriam dificuldade em dar uma explicação mais ou menos correcta, mas tal não aconteceu, apesar de se tratar de um conceito abordado no 12.º ano (ou equivalente). Na verdade, raros foram os alunos que responderam de uma maneira satisfatória. Nos anos subsequentes a experiência não deu melhores resultados, mas eu já não fiquei surpreendido…

Passadas umas duas dezenas de anos, peguei por acaso num livro e dei comigo a ler a definição de ponto material: «(…) partícula: um objecto em movimento é considerado como uma partícula se as suas dimensões forem pequenas quando comparadas com o tamanho (comprimento) da trajectória.» [Abro um parêntese para referir que partícula é entendida como equivalente a ponto material. Eu prefiro reservar o termo partícula para designar entidades como protão, neutrão, partícula alfa, partícula beta, etc., mas essa não é a questão a tratar aqui.]
Não tendo considerado correcta a definição, resolvi escrever a um dos autores, de quem era (e sou) amigo, a quem apresentei (cuidadosamente) as minhas razões:
Caro X
Ontem, por razões circunstanciais, abri o livro de Física para o 12º ano de que és co-autor e fui levado a ler a definição (digamos assim) de partícula, a qual me suscitou dúvidas.
As dúvidas são as seguintes: (a) A definição, tal como está, aplica-se a objectos “em movimento”. Não haveria vantagem em generalizar a definição? (b) Afigura-se-me arriscado comparar as “dimensões do objecto” com o “comprimento da trajectória” para efeito da decisão sobre se o objecto pode, ou não, ser considerado como uma partícula. Estou em crer que há exemplos em que a definição, tal como está, não funciona. Não seria mais seguro comparar as “dimensões do objecto” com a “distância a que se encontra o observador”?
Pessoalmente seria levado a traduzir o conceito de partícula, ou ponto material, do seguinte modo: Num dado estudo, qualquer objecto pode ser considerado uma partícula desde que possamos abstrair-nos das suas dimensões. Gostaria de saber o que pensas desta formulação.

O colega X respondeu defendendo o seu ponto de vista, como era de esperar. Escrevi-lhe então uma carta mais longa para melhor exprimir o que pensava. O teor da carta foi, no essencial, o seguinte:


Caro X
Em geral, quando começamos a falar de um conceito “simples” (partícula ou ponto material, neste caso), a coisa corre o risco de se tornar “complicada”, tantos são os aspectos a ter em conta, sobretudo quando se trata de um conceito a introduzir “ab initio” (expressão utilizada pelo meu interlocutor e que resolvi manter aqui) no estudo da cinemática, na ocorrência. Mas, a meu ver, vale a pena tentar chegar a uma solução equilibrada, desde que o objectivo (ensino) ou os destinatários do livro (estudantes) possam beneficiar com esse esforço.
Sinceramente parece-me um tanto radical a hipótese que admitiste de “não apresentar qualquer definição e, mais tarde, apresentar com rigor a física do centro de massa”, por três ordens de razões:
(a) O conceito de partícula é muito importante, e tudo o que se possa fazer para o clarificar “ab initio”, com os conhecimentos disponíveis no começo do 12º ano, é de explorar consoante as circunstâncias.
(b) O conceito de partícula é muito útil “ab initio” para a descrição dos movimentos. Acresce que, se o conceito for introduzido com o rigor possível logo nesta fase, há a vantagem de a construção mental poder começar a fazer o seu caminho, com vista à sua progressiva assimilação.
(c) Embora na fase inicial não se possa ainda falar de centro de massa, talvez se possa falar de centro de gravidade de uma forma apropriada. Estou a pensar, concretamente, no movimento de objectos num campo gravítico uniforme, por exemplo a queda de esferas de um material denso (chumbo) com raios diferentes, em movimento vertical descendente. Julgo que os estudantes estarão em condições de compreender que a descrição do movimento de cada esfera, em si mesmo e enquanto tal, é independente do raio da esfera (pode-se abstrair das dimensões), tudo se passando como se o peso estivesse aplicado num ponto particular, o centro de gravidade da esfera (ou centro geométrico, eventualmente).    
Posto isto, concordo que, com uma definição como a que sugeri, “se coloca sempre a questão de saber em que condições se pode desprezar as dimensões”, como tu dizes. Esta questão não tem uma resposta fácil, porque depende do estudo em causa. Como ultrapassar a dificuldade?
Uma via, que eu estaria tentado a advogar, porque mais “simples” de apresentar, consiste em remeter para o estudante a decisão se sim, ou não, pode desprezar as dimensões do objecto no estudo em causa, através de exemplos elucidativos. Seria um convite à reflexão.
(1) Se, por exemplo, um estudante tiver de descrever o movimento de um objecto situado a uma distância suficientemente elevada (um planeta, um satélite artificial ou um avião voando a grande altitude, vistos de um lugar da Terra; um carro ou uma pessoa vistos de um avião ou de um arranha-céus; etc.), decerto não terá dificuldade em reconhecer que pode abstrair das dimensões dos objectos na descrição do movimento. Esta via explora obviamente a constatação comum de que os objectos parecem cada vez mais pequenos quando observados a distâncias cada vez maiores. O estudante compreenderá que, a partir de uma certa distância, o objecto, qualquer que ele seja, pode ser considerado como um “ponto”, em termos geométricos.
(2) Outros exemplos decorrem do estudo do movimento de translação de objectos: como todas as partes do objecto se deslocam exactamente da mesma maneira, no fundo pode-se abstrair das suas dimensões e considerar apenas o movimento de um ponto particular do objecto (se se tratar de um cubo, por exemplo, pode-se considerar o movimento de um dos seus vértices como representativo do movimento do objecto).
(3) Se, num exemplo simples de estática, se tiver uma esfera em equilíbrio suspensa de dois fios, podemos abstrair-nos das suas dimensões e considerá-la como um ponto material a que estão aplicadas três forças.  
(4) Uma outra via, de natureza e alcance diferentes, consistiria em dar um ou dois exemplos de situações menos simples em que se pode “quantificar” a decisão, enriquecendo o conceito na perspectiva da noção de objecto pontual. Vejamos um caso concreto: Os alunos da Ciência Viva que fazem (fizeram) experiências de Física das Radiações no ITN, ao estudarem a variação da actividade “vista” por um detector Geiger-Müller em função da distância da fonte radioactiva à janela do detector, são levados a constatar que, a partir de uma certa distância, a fonte radioactiva pode ser considerada como uma fonte pontual: isto acontece quando os pontos experimentais começam a situar-se sobre a curva que traduz a conhecida lei do inverso do quadrado da distância. É assim que concluem que uma fonte radioactiva plana com cerca de 2 milímetros de diâmetro pode ser considerada uma fonte pontual a partir de uma distância fonte-detector da ordem de uma dezena de centímetros. Neste caso, a razão entre as dimensões envolvidas é aproximadamente 2/100, ficando assim quantificada q.b. a condição de a fonte radioactiva poder ser considerada como “pontual”.  
Em conclusão, julgo que é de manter a introdução do conceito de partícula “ab initio” (como no caso do teu livro), mas afigura-se-me que é necessário dedicar-lhe mais espaço, para alicerçar o conceito através de uma abordagem que contemple aspectos relevantes a ter em conta. Uma eventual referência a uma matéria a ser ministrada no futuro (movimento do centro de massa) dar-lhes-á a ideia de que a construção do conceito é susceptível de acrescentos e aperfeiçoamentos. Isto deveria permitir aos estudantes compreender que uma noção aparentemente simples, só é simples na aparência… o que é enriquecedor em termos de formação.  
Se esta opinião for de alguma utilidade, o passo seguinte, julgo eu, consistiria em identificar o conteúdo da introdução ao conceito, à luz do objectivo que se tem em vista e daquilo que os estudantes sabem no início do 12º ano e, ainda, atendendo ao espaço a consagrar a essa introdução. É claro que quanto mais curta, completa e rigorosa for a introdução, mais difícil será a sua redacção.
Chegado aqui, ocorre-me um post-scriptum de uma carta que Eça de Queiroz terá escrito a alguém: O meu Amigo desculpará a carta ser tão extensa, mas não tive tempo para ser mais breve.

O meu interlocutor ainda me enviou uma derradeira missiva, à qual respondi como segue:


Julgo que o essencial sobre o conceito de “partícula” ficou dito nesta nossa conversa. Registo apenas a seguinte passagem do teu e-mail: Autores operacionalistas como, por exemplo, os russos Yavorski e Detlaf consideram a partícula como algo real: uma partícula é um corpo cuja forma e dimensões se podem desprezar «por não terem importância alguma para um problema dado».
Devo dizer que concordo com esta formulação, que “coincide” essencialmente com a que eu adopto, e que te transmiti no meu primeiro e-mail: Num dado estudo, qualquer objecto pode ser considerado como uma partícula (ou ponto material) desde que possamos abstrair-nos das suas dimensões.


Hoje em dia, os estudantes têm a possibilidade de recorrer à internet para “saber mais”… E o que encontram quando pesquisam “ponto material” (no Google, por exemplo)? Há tanta informação que o difícil é separar o trigo do joio, apenas ao alcance de pessoas com algum grau de especialização na matéria. Vejamos, por exemplo, o que nos diz a popular Wikipedia a propósito de ponto material:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ponto_material: Em Mecânica clássica, ponto material é uma abstracção feita para representar qualquer objecto que em virtude do fenómeno tem dimensões desprezáveis, ou seja, dimensões tais que não afectam o estudo do fenómeno.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ponto_material_na_cinem%C3%A1tica: Em cinemática, um corpo é representado por um ponto geométrico quando as suas dimensões forem desprezáveis em relação à extensão da trajetória por ele descrita. Neste caso, o ponto geométrico é chamado ponto material.
http://en.wikipedia.org/wiki/Point_particle: A point particle is an appropriate representation of any object whose size, shape, and structure is irrelevant in a given context. For example, from far enough away, an object of any shape will look and behave as a point-like object.
Em conclusão: A primeira versão (em Português) não me parece suficientemente esclarecedora. A segunda versão (também em Português) “coincide” com a definição do livro de Física do 12.º que contestei e que, em última análise, deu origem a esta entrada.
A versão inglesa afigura-se a mais correcta, e “coincide” com a versão que sugeri (e sugiro). Pode ser verificado que as versões francesa e espanhola são equivalentes à versão inglesa.
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Talvez o leitor tenha agora vontade de perguntar: Face ao debate em causa, não poderia ter aligeirado esta entrada? Podia, mas não era a mesma coisa.

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