domingo, 15 de maio de 2011

Os Pássaros

Bruxelas - Agosto
Frio em Bruxelas, apesar de ser Agosto. Mas a temperatura hoje não me afecta. Tenho na mão um papel que situa na cidade as melhores livrarias para a infância e esta é uma daquelas manhãs deliciosas de ir em busca de surpresas literárias. Caminho sobre nuvens e vou retirando e folheando inúmeras obras. E há um livro que me escolhe. Sim, é essa a sensação. Acontece raramente… A última vez tinha sido há cerca de vinte anos em Lisboa, quando descobri, emocionada, “A árvore generosa” de Shell Silverstein em edição brasileira, obra que na altura era praticamente desconhecida em Portugal. Desta vez trago junto ao coração “Les oiseaux” de Germano Zullo e Albertine, uma dupla de criadores suíços. Ele escritor e poeta. Ela artista plástica. “Os pássaros”… uma pérola…

Vimeiro - Outubro – O início do percurso
Está decidido. “Les oiseaux” será a estrela do nosso Natal. Não terá nada a ver com a época mas, no entanto, tem tudo! O seu texto é poesia pura para uma viagem de reflexão sobre o que é “essencial”.

Há dias que são diferentes. Poderíamos crer que se trata apenas de mais um dia igual aos outros. No entanto há dias que contêm qualquer coisa a mais do que os outros. Nada de muito evidente. Um pequeno detalhe. Minúsculo. A maior parte das vezes nem nos damos conta desse pequeno detalhe. Porque os pequenos detalhes não são feitos para que reparemos neles. São feitos para serem descobertos. E quando nos damos tempo para os procurar… os pequenos detalhes aparecem… aqui ou ali… minúsculos… mas de repente de tal modo presentes que se tornam enormes. Os pequenos detalhes são tesouros. Verdadeiros tesouros. Não existem mesmo maiores tesouros do que os pequenos detalhes. Um apenas desses pequenos detalhes é suficiente para enriquecer o momento que passa. Um só desses pequenos detalhes chega para mudar o mundo.
Germano Zullo

Longa será a viagem
O percurso iniciou-se com a apresentação individual do livro a cada criança. Da descodificação das imagens resultaram 15 histórias distintas marcadas pela sensibilidade poética, imaginação e personalidade de cada uma delas. Com base nessa multiplicidade de recontos, escolhendo uma passagem de uma criança, de outra e de outra… compus uma história “colectiva”. Digitalizadas as imagens, foi feito um powerpoint que apresentei ao grupo já com a história de conjunto.

HISTÓRIA COLECTIVA
Era um deserto. Veio uma carrinha no caminho e vinha muito apressada. A carrinha de repente parou porque ali o caminho ia dar a uma rocha muito alta. E lá em baixo era o rio. O homem abriu a porta e saiu. Depois abriu a caixa do carro e viu se estava lá alguma coisa. E saiu de lá um pássaro! E depois daquele pássaro saíram muitos pássaros!... E voaram todos para o sul para um país mais quente… e o homem ficou a olhar para eles. Depois voltou à carrinha para ver se tinha lá mais algum pássaro. E ficou espantado. O homem pensava que a camioneta estava vazia, mas não… Estava ainda um pássaro escondido. Era um passarinho bebé. Ele indicou àquele pássaro o caminho por onde os outros pássaros tinham ido.. E disse: “Olá! Voa até aos teus amigos!” E mostrou como se faz para voar. “Olha, voa assim…”. Mas ele não sabia voar. “Eu não sei voar…”, e o senhor disse: “Eu também não…” Depois ele pensou: o melhor é eu tratar deste pássaro enquanto ele não cresce e depois indico-lhe outra vez o caminho… E ficaram os dois a descansar ao pé do rio. O homem ficou sentado a olhar para o passarinho. O passarinho estava a tentar dizer-lhe uma coisa: que ele não conseguia voar porque era bebé… e ficaram ali algum tempo… O homem tinha uma sandes no bolso. Ele partiu ao meio e ficou com duas, para dar migalhinhas ao pássaro… e ele ficou feliz por ter comida. E comeram os dois. Quando o pássaro já tinha crescido um bocadinho… o homem indicou outra vez o caminho. O homem fez montes de alegrias para ele. Ele fez como se estivesse a voar para o pássaro perceber que devia voar… mas perdeu o balanço e caiu. O pássaro conseguiu voar… aos poucos… e parou em cima da cara do homem. Ele aprendeu num instante… aprendeu aprendendo!... E voou sozinho assim sem ninguém o levar ao colo… Mas sentiu imensa falta do senhor… e foi para o pé dos outros pássaros. A carrinha ficou vazia e o senhor ficou lá muito tempo a olhar para o céu… depois enfiou-se na carrinha, fechou a porta, voltou para trás e subiu o caminho.
Mas o pássaro foi atrás do homem e ele não estava a ver. Veio a voar… a voar… a voar… e toda a família voou atrás do homem porque todos gostavam dele porque ele é que os tinha libertado. O senhor parou a camioneta... Eles não disseram olá nem bom dia e levaram o homem a voar… a voar… Queriam levá-lo para o seu ninho! O homem percebeu que aquela ideia era do pássaro pequenino porque ele gostava muito do homem. E depois o homem começou a voar como os pássaros porque ele percebeu que era só bater as mãos levezinho e deixar que o vento passasse por elas. Ele aproveitou o vento e deslizou melhor no ar. E o passarinho ia na sua cabeça.
E como é que é a cara dele agora? É cara de quê??? … de feliz!


Novembro – As visões de cada um…
Envolvidas no espírito da história, as crianças foram desafiadas a representar em modelagem, sobre uma placa de madeira, os elementos principais da história: o homem, a carrinha e o pássaro pequeno. Modelar… colar… pintar… envernizar… Quinze imagens para uma história. Estas serão as prendas de Natal para os pais. Como céu azul surgirá, na vertical, o texto de cada criança e no verso o texto de Germano Zullo. Esta prenda simbólica pretende manter na memória da família o momento da Festa de Natal e também a sua mensagem para a vida de cada um.
Em seguida foram algumas horas a ouvir e seleccionar músicas para criar uma montagem musical para a sequência da história e respectiva animação pelas crianças. Sons exóticos de marimba tocados por She-e-Wu, acordes clássicos de Bartok, inesperadas e poéticas melodias de Pascal Comelade e tantos outros foram alinhados e gravados criando a “história musical” de “os pássaros”. Esta montagem foi depois apresentada ao grupo ao mesmo tempo que se revia o livro, agora colectivamente. Pareceu ser estimulante... porque foi difícil evitar que imediatamente se levantassem e passassem ao movimento.

Dezembro – A animação…
As sessões de psicomotricidade que fazemos no salão da Associação Cultural e Recreativa do Vimeiro passaram a ser de exploração do movimento relacionado com a acção da história e, progressivamente, de ensaio da animação multimédia para a Festa. Esta será um misto de dramatização mimada e jogo de sombras (utilizando uma tela branca gigante que cruzará a sala) com a projecção do powerpoint acompanhado da música e narração do texto colectivo. Num segundo momento, as imagens passarão de novo mas desta vez já sem animação e com a leitura do texto original de Germano Zullo.
Precisamos de uma carrinha vermelha! E ela nasce de caixotes de papelão, jornal, cola, tinta, verniz e papel autocolante… Precisamos de bicos e asas para os muitos pássaros que voarão em sombras por detrás da tela. As mães e avós atarefam-se a cortar e coser asas. Os bicos são feitos em cartolina.


Mas… e a prenda para os meninos?
Em reunião de pais coloca-se a questão: e a prenda para eles? Felizmente a criatividade de uma mãe sugere um “mimo” que faz todo o sentido neste percurso: a construção de fantoches de dedo. Fantoches – pássaros, claro! A adesão é espontânea. Fica logo marcada uma sessão de atelier de costura no Jardim num fim de tarde da semana seguinte. Com feltro colorido, linhas, olhinhos de compra e cola, iniciou-se a confecção de pequenos e ultra-coloridos pássaros exóticos que serão oferecidos no dia da Festa. Mas muitos serão ainda feitos em casa, nos breves momentos retirados pelas mães à azáfama do dia a dia de trabalho.


17 Dezembro – A festa…
E eis chegado o dia da Festa! As famílias acorrem como habitualmente quando as desafiamos… atentas, prontas para as surpresas que lhes reservámos. Tudo a postos… ACÇÃO! A música, as imagens e o texto envolvem os presentes. A breve coreografia dos pássaros voando para o sul corre lindamente. Os “pássaros” estão sérios e compenetrados no seu papel. E lá vem o homem com a sua carrinha vermelha deambulando pelos caminhos do deserto e despertando o sorriso dos adultos e a gargalhada das crianças que assistem. O homem ensina o pássaro a voar e o pequeno passarinho (o mais jovem do grupo, com três anos muito responsáveis) assume bem a sua interpretação, tendo no final um ataque de riso que deixa de novo o público sorrindo. E, por fim, a última imagem... o homem voando com “cara de feliz!”.
Depois da versão colectiva da história, segunda passagem das imagens, desta vez com o texto de Germano Zullo. Seguir-se-ão algumas canções e... o encontro com o Pai Natal. E é aqui que, de dentro de coloridos embrulhos surgem os fantásticos pássaros criados pelas mães e avós das crianças! Há mais de 30 pássaros circulando nas mãos dos meninos. Pássaros tropicais que parecem chegados da floresta amazónica, pequenos pássaros-bebés, outros de grandes asas destinados a longos voos, alguns exuberantes de crista colorida, cucos com chapéu e até um bat-bird (super-pássaro de asas de morcego, mascarilha e capa!). Com tal bando é certo que inventaremos, já em Janeiro, uma nova história com pássaros… E desta vez surgirá um teatro de fantoches de dedo…
Segue-se o lanche convívio. Na sala as crianças oferecem a sua prenda aos pais que se deliciam a ler o texto único de cada uma e a ver a sua representação plástica da história.
São 22 horas quando os últimos pais e crianças saem do Jardim. Esperamos que um enorme bando de aves transparentes invada os seus sonhos esta noite.

Projecto desenvolvido na sala 1 do Jardim de Infância do Vimeiro, do
Agrupamento de Escolas D. Lourenço Vicente (ano lectivo 2010/2011)


Artigo de Helena Martinho publicado nos Cadernos de Educação de Infância, da Associação de Profissionais de Educação de Infância, N.º 92, Janeiro-Abril.2011 (número temático sobre livro/leitura/literacia)

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