segunda-feira, 2 de maio de 2011

Automóvel a quanto obrigas

Quando acontece, por uma razão circunstancial que o justifique, ter de dizer a alguém que não tenho automóvel, a reacção é invariavelmente de surpresa. Ao olhar de espanto, segue-se uma pergunta carregada de admiração, com laivos de incredulidade: “Não tem automóvel?!”

Compreende-se a reacção. Hoje em dia, o automóvel é quase obrigatório. Dá prestígio social. Mesmo que se tenha de cortar no essencial para pagar as prestações, ou que a meio do mês já não haja dinheiro para a gasolina. Já lá vai o tempo em que o aparecimento da primeira bicicleta a motor na Chamusca foi motivo de conversa. Automóveis, havia poucos. Não era arriscado atravessar a rua principal. Nessa altura, ganhava-se pouco. Os pobres tinham consciência da sua condição. Não pretendiam passar por aquilo que não eram.

O seu filho não tem automóvel?!”, perguntavam a minha mãe. “Mas é fácil comprar um. Só não tem automóvel quem não quer”, continuavam. “Ele é que sabe”, respondia ela, sempre confiante. Um colega meu dizia: “Só comprarei um carro quando tiver dinheiro para dois”. Num primeiro instante, não se percebe talvez o alcance do dito. O tempo, porém, encarrega-se de mostrar como é sábia tal atitude de prudência. Hoje basta ter dinheiro para a primeira prestação, ou nem isso. Outros tempos. Nem piores nem melhores, apenas diferentes. Próprios de uma época em que é mais importante parecer do que ser.

O facto de não se ter automóvel cria, por vezes, algumas dificuldades. Não nos podemos dar ao luxo de preguiçar de manhã na cama, porque temos de nos levantar a horas certas para não perder o autocarro. Em domingos de sol, apetecendo ir para a linha do Estoril ou para a Costa da Caparica, há que ficar sujeito ao horário dos transportes públicos. Aquando de uma situação de urgência, tem de se recorrer a um táxi. Mas estas dificuldades não chegam a constituir verdadeiros problemas. Superam-se facilmente. É uma questão de hábito, eventualmente de filosofia de vida.

Em contrapartida, há vantagens largamente compensadoras em não ter automóvel (é claro que não se consideram aqui as situações em que o carro é um instrumento imprescindível para ganhar a vida). Viajando em transportes públicos, estamos mais próximos do cidadão comum, apreende-se melhor o pulsar da vida. Pode-se dormir descansado, sem receio de roubarem o carro ou de o encontrar danificado pela manhã. Não se anda em permanência com o credo na boca para fazer face a todo o tipo de despesas que um automóvel comporta, desde a reparação de avarias normais até ao prémio do seguro, para não falar de situações acidentais onerosas. Não nos cansamos em filas enervantes de um trânsito caótico. Não se corre o risco de provocar acidentes, com todo o cortejo de sequelas que daí podem resultar. Não contribuímos para a poluição de que todos nos queixamos. Etc. Sem automóvel, não se tem status? Paciência. Não se pode ter tudo na vida...


Artigo publicado no jornal O MIRANTE em 08.Junho.1993

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