domingo, 12 de julho de 2015

Que efeito Sampaio da Nóvoa?


Ao apresentar publicamente a sua candidatura à presidência da República, António Sampaio da Nóvoa (ASN) ficou obviamente sujeito ao escrutínio dos portugueses, sejam eles jornalistas, comentadores ou simples cidadãos. É assim que funciona a democracia. Pretende-se neste post contribuir para o escrutínio de ASN enquanto reitor da Universidade de Lisboa (UL) durante dois mandatos (2006-2013). Antes, porém, afigura-se oportuno evocar outras intervenções públicas afins.
1. João Miguel Tavares (JMT), no artigo “O burocrata Sampaio da Nóvoa” (Público, 23.Junho.2015), comentou o caso de um pedido formulado por um grupo de moradores de Oeiras no sentido de embargar as obras de ampliação de um lar de acolhimento para adultos com paralisia cerebral. Soube-se pelos jornais que ASN fora o primeiro signatário deste pedido. Face ao esclarecimento dado posteriormente por ASN para justificar a sua acção, JMT afirmou o seguinte: “parece-me extraordinário que um homem dado a discursos tão empolgantes  (…)  troque subitamente o idealismo mais elevado pela mais deslavada resposta burocrática só porque está em causa o jardim ao lado de sua casa.”
Houve quem não gostasse desta opinião e classificasse o artigo como um “exemplo de parvoíces elevadas a artigo de opinião num dos jornais de referência”. JMT retomou o assunto no artigo “A falta de escrutínio em Portugal” (Público, 02.Julho.2015), onde esclareceu que “o escrutínio de um político, sobretudo numa eleição unipessoal, é muito mais do que brincar aos polícias: implica saber o que fez, com quem fez, quais as suas opções de vida, de onde vem, que decisões tomou, grandes ou pequenas, na medida em que elas contribuam para traçar o perfil de quem se propõe ocupar o cargo mais elevado da nação.”
2. Em contraposição, Jorge Ramos do Ó, professor associado do Instituto de Educação da UL, num artigo laudatório intitulado “O efeito Sampaio da Nóvoa” (Público, 30.Junho.2015) enaltece, compreensivelmente, as qualidades do seu colega, que conhece “há mais de 25 anos”. Desse artigo, chamaram-me a atenção duas passagens respeitantes à UL.
A primeira é esta: “(...) enquanto reitor da Universidade de Lisboa, e além do governo da instituição, [Sampaio da Nóvoa] estabeleceu pontes e articulou ideias suficientes das quais resultaram a mais importante transformação – a fusão com a Universidade Técnica em 2013 – que a instituição sofreu desde a sua fundação, há pouco mais de um século atrás”. Sobre esta matéria, há quem pense que se tratou de um “casamento de conveniência”, mas ainda é cedo para avaliar os eventuais ganhos de escala resultantes da fusão. Uma coisa é certa: no ranking das universidades, a UL continua numa posição modestíssima, sendo superada até por universidades portuguesas mais novas, nascidas quando o Prof. Veiga Simão era ministro da Educação.
A segunda prende-se com uma afirmação forte: “Bateu-se por uma universidade do amanhã (…)”. Julgo ter razões para duvidar que ASN se tenha batido, verdadeiramente, “por uma universidade do amanhã”. As instituições só podem melhorar “amanhã” através de um esforço porfiado de reconhecimento do mérito “hoje”, e não através de continuadas relações de consanguinidade baseadas em preconceitos e em formas de compadrio. Ora o sistema de avaliação (do mérito) vigente na UL é deste tipo e ASN foi incapaz de o modificar enquanto reitor. Discursos retóricos podem empolgar certas plateias, mas não resolvem problemas estruturais graves. 
Vejamos duas histórias, uma ficcionada e outra real, que servem como ilustração do não reconhecimento do mérito na UL.
3. A história que se segue é ficcionada, mas traduz a lógica de funcionamento do sistema, muito em especial quando se trata de concursos para preenchimento de vagas de professor catedrático. Vem no livro “Um Crime na Teia Universitária” da autoria de um professor da Faculdade de Ciências da UL (Chiado Editora, 2013). Eis três passagens da fala do director da Faculdade aquando de um diálogo com o professor responsável pelo Departamento em apreço.
«― Bem Guido, como sabes, após as últimas reformas de vários colegas, o teu Departamento tem um número de professores abaixo do número máximo que lhe é permitido ter. Por isso falei com o Reitor e aceito abrir lugares de professor para o vosso Departamento, entre eles um de catedrático. Mas não queremos contratar alguém de fora, nem abrir o concurso a toda a gente, a ideia é promover um dos nossos professores associados com agregação.
― Bem, fazemos aquilo que se chama um concurso com fotografia. Vocês no Departamento decidem quem querem promover. E abrimos o concurso ajustado a essa pessoa, escolhendo por exemplo a área de trabalho muito bem definida.
― E mais: tens de escolher um júri para o concurso que seja favorável ao que decidirem. Nota que a lei obriga a que os membros externos estejam em maioria. Por isso tens de garantir que pelo menos um irá votar tal como os membros internos. Os restantes não interessam nada. Servem só para enfeite
A história prossegue com a análise dos currículos dos candidatos internos e com a reunião dos professores catedráticos do Departamento destinada a escolher “o” candidato. Fica-se então a saber que «A Ilda era a candidata que tinha melhor currículo e que seria mais justo promover. Mas ele [Guido] detestava a Ilda, sabia que tinha mau feitio e antipatizava fortemente com ela.» A partir daqui podemos imaginar o resto: a Ilda é preterida, apesar de ser a mais competente, e o escolhido é o Geraldo, uma espécie de lacaio de Silvino, que era o catedrático dominante...
4. Curiosamente, conheço uma situação que corresponde “exactamente” ao caso romanceado no livro. Conta-se em poucas palavras: 
(1) Por aviso assinado por Sampaio da Nóvoa em 02.Agosto.2011, foi aberto um concurso geral para professor catedrático do departamento de Geologia da Universidade de Lisboa. Como o concurso foi aberto em plenas férias de Verão (!), não surpreende que tenham concorrido apenas dois candidatos internos - um candidato e uma candidata - e zero candidatos externos (estes poderiam provir de outras universidades, inclusive estrangeiras, dado que estes lugares são sempre muito apetecidos).  
(2) O júri, escolhido a preceito, decidiu logo à partida chumbar em mérito absoluto (!) o candidato com melhor currículo (ver AQUI) e deixou em cena a candidata restante (ver AQUI).
(3) Resultado óbvio do concurso: o melhor candidato foi eliminado e a candidata foi promovida. 
(4) O candidato injustiçado ainda recorreu, mas a decisão final do júri foi homologada por Sampaio da Nóvoa que, com a sua assinatura, a converteu no acto administrativo necessário (e suficiente) para a concretização prática da finalidade do concurso.
Neste processo acabou por se verificar ainda uma outra incongruência reveladora do modo como o sistema funciona: o concurso foi aberto para preencher “um” lugar de professor catedrático na especialidade “X”, mas, em consequência do concurso, o departamento de Geologia passou a ter “dois” professores na especialidade “Y” (a candidata aprovada e o então presidente do Departamento) e “nenhum” professor na especialidade para que fora aberto especificamente o concurso por Sampaio da Nóvoa. 
Quer isto dizer que, num aspecto tão crucial para uma “universidade do amanhã”, ninguém cuidou de cotejar o resultado final do concurso com o objectivo inicial que motivou a sua abertura. Em termos populares, dir-se-ia que ninguém cuidou de saber por que razão não deu a bota com a perdigota.
E assim vamos vegetando nesta "pátria parada à beira de um rio triste"...


PS – A história real do concurso pode ser lida AQUI.


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Pausemos então...

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