segunda-feira, 19 de março de 2018

Carta a meu Pai

Pai,
Hoje, já depois da meia-noite, tive a ideia de te escrever uma carta no Dia do Pai. E até comecei a escrevê-la na minha cabeça, rememorando factos da minha infância. Esta é, pois, a carta que nunca te escrevi.
Tinhas uma bicicleta que era a inveja dos que a viam reluzir e conheciam o teu cuidado obsessivo com ela. Porque me veio isto à memória? Porque passei muitas manhãs de domingo a ver-te desmontá-la debaixo da grande oliveira que havia no nosso quintal, ao lado do poço. Fiquei a saber como o petróleo era importante na limpeza da corrente e das esferas dos rolamentos das rodas. Antes da remontagem era preciso olear tudo muito bem, para que a bicicleta rolasse com o mínimo de esforço possível.
Foi sentado no quadro dessa bicicleta que me levavas ao Pinheiro Grande visitar os avós e a bisavó, que sempre me dava uma mão-cheia de pinhões já descascados que tão bem me sabiam. No regresso já me doía o rabo da trepidação da bicicleta na estrada de então, mas nunca dei por mal empregue a aventura dessas viagens.
A certa altura, já eu era espigadote, alugaste o bar da filial do Benfica na Chamusca para melhorar os rendimentos familiares. Na época do tomate, como ficavas até mais tarde na fábrica onde trabalhavas (SPALIL), era eu que ficava encarregado de abrir o bar e atender os clientes. Em dias de baile, havia muita gente de fora com quem aprendi coisas que desconhecia. “Quero um carioca”, disse-me uma vez um forasteiro. Fiquei atrapalhado, olhei para a garrafeira e disse: “Não temos!”. Ele riu-se e explicou-me que se tinha café e água também tinha carioca... Noutra ocasião, pediram-me um "chá frio" e passou-se uma cena análoga. Fiquei então a saber que era um copo de vinho branco...
Quando vieste para a Chamusca, trabalhaste na padaria do senhor Fonseca. Vi-te a trabalhar a massa com esforço, a aquecer o forno com as estevas aromáticas que vinham da charneca e a tirar os pães com a pá achatada. Era um trabalho duro que fazias com gosto e orgulho pela qualidade do pão que produzias e que era vendido ao balcão. E sabes Pai? Foi ao teu lado a amassar o pão que li a minha primeira palavra (num jornal), com os ensinamentos do jardim escola onde aprendi as primeiras letras.
Tinhas um lado de que eu não gostava, Pai. Uma vez por outra, depois de teres estado com uns amigos em alegre patuscada, chegavas ao fim do quintal e perguntavas à distância: “Oh Maria Emília, já deste água ao borrego?”. Para nós era um sinal de que vinhas com um "grão na asa" e que porventura haveria desconversa. Eu não gostava nada que desconversasses com a Mãe.
Quando chegaste ao fim do caminho, em 1991, eu chorei como nunca no teu funeral. Eu tinha 55 anos e não sabia que gostava tanto de ti.
Repousa em Paz, Pai!
Eduardo

1 comentário:

  1. ...e conseguiste emocionar-me com a tua bela carta...a esta hora o avô Martinho junto com o avô Pinheiro, decerto deitarão também uma lagrimita...Avô Martinho onde quer que esteja um abraço....

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