Detalhe (1/170 aprox.) do quadro intitulado Un peu de neige salie (Girassol Frio, VI)
segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011
sábado, 26 de fevereiro de 2011
Uma bruxa muito especial...
As bruxas têm sempre nos meus grupos um lugar muito especial. Elas são em geral velhas tontas que fazem coisas inconcebíveis, mas que apresentam ao mesmo tempo traços do quotidiano infantil. São simultaneamente figuras misteriosas e anedóticas... assustadoras e hilariantes. E é assim que, de meio para meio, as bruxas tomam aspectos diferentes e diferentes são os rituais e os espaços que nos ligam a elas. Assim, se numa aldeia da Beira Alta as bruxas moram em casas abandonadas, apanham míscaros, preparam a vianda dos porcos e bebem vinho, numa vila como Tábua outras coisas podem acontecer...
Havia no Jardim de Infância um canto revestido a tijoleira com um fogão a lenha bem preto e sugestivo. Era a casa da bruxa. Tínhamos já feito um grande chapéu bicudo em cartolina preta e a bruxa tinha também disfarces e adereços: um xaile, o lenço para a cabeça, o espelho mágico, uma cesta de maçãs, uma grande colher de pau e claro... lenha para o lume.
Nessa casa, coisas mirabolantes aconteciam todos os dias. Faltava a vassoura mágica, importantíssima para os arrojados voos da bruxa pela sala... Foi assim que no dia da feira mensal partimos à procura de uma vassoura, daquelas mágicas. Não foi sem algum receio que o grupo se aproximou do senhor que vendia vassouras de milho painço. Decididamente, um velhote que vende vassouras voadoras, só pode ser um bruxo disfarçado... mas lá se fez a escolha e a compra foi feita. Claro que no regresso ao Jardim de Infância já iam três montados na vassoura. É verdade que de início, para alguns, foi de certo modo uma decepção verificarem que a vassoura não os levava realmente pelos ares, mas depois todos entraram na fantasia do jogo e a vassoura todos os dias voava nas nossas histórias.
A partir daí, nos nossos passeios pelo pinhal, aconteciam coisas misteriosas e divertidas... o barulho de um avião era a bruxa voando apressada na sua vassoura e o depósito da água passou a ser a casa da bruxa. Assim, sempre que aí passávamos havia batidelas na porta, perguntas e provocações feitas à bruxa, desafios sem resposta; a bruxa era muito dorminhoca.
Foi por essa altura que chegou a Tábua uma visita, a minha irmã Isabel, que por coincidência reunia na altura características típicas das nossas bruxas... vestida de negro, saia comprida, dois brincos numa orelha e um corte de cabelo que lhe deixava na nuca uma madeixa mais comprida. A juntar a isto... um sentido de humor muito especial.
De repente surgiu a ideia... A Isabel ia ser bruxa durante uma semana. Uma bruxa simpática e divertida que deixasse saudades em Tábua.
Para dar credibilidade à situação, nada como fazê-la aparecer no pinhal. Foi assim que uma manhã deixei a Isabel de chapéu de cartolina e vassoura de milho painço no depósito da água, esperando a nossa visita. No passeio pelo pinhal o grupo sentou-se à sombra do depósito para lanchar e surgiram como habitualmente os desafios à bruxa... e a bruxa apareceu mesmo, com um grande sorriso. Desta vez não estava a dormir... O momento foi de emoção e silêncio, mas logo apareceram balões multicores que a bruxa ia dando enquanto explicava que viera de Lisboa na sua vassoura...
Um minuto depois choviam perguntas... «Tu és mesmo uma bruxa?»... «Vieste de Lisboa sempre a voar?»... «Oh bruxa, nós lá na escola temos um chapéu e uma vassoura assim... não foste lá roubar dentro?»... «Por que é que tens o sol e a lua nessa orelha?»... «A tua vassoura voa mesmo? Voa lá um bocadinho...». A bruxa não tinha descanso e as respostas loucas que dava punham o grupo a rir. Contou peripécias da viagem, segredos de magias... e acabaram todos a fazer a dança das bruxas aos pulos pelo pinhal. Claro que à hora de almoço todos queriam levar a bruxa para casa, mas expliquei que ela era minha convidada especial e ia ficar uns dias comigo.
Foi assim que começou a semana das bruxarias... Todos os dias a bruxa aparecia na escola e tudo rodava à volta dela, das histórias que ela contava, das danças e jogos que ensinava, das magias que fazia.
Até que uma das crianças se lembrou que eu já lhes falara de uma irmã chamada Isabel... «Oh Lena, eu acho é que esta bruxa é a tua irmã de Lisboa.»
Deixei-os na dúvida... Com o tempo, e depois do regresso da bruxa a Lisboa, todos eles descobriram que o era realmente e, no entanto, a magia continuou. Quiseram escrever cartas à bruxinha Isabel e desenhar «retratos» dela. Mandaram uma cassette com as suas recordações e mensagens gravadas. Pediam-lhe constantemente que voltasse a Tábua.
E ainda hoje, dois anos depois, chegam cartas de Tábua com beijos para a bruxinha. Uma bruxa que aterrou em Tábua... um dia... por acaso.
Crónica de Maria Helena Pinheiro Martinho publicada
na revista Cadernos de Educação de Infância, N.º 8, 1988
NOTA
Relato de uma situação passada no ano lectivo de 1985/1986 no Jardim de Infância de Tábua (Coimbra).
Ilustrações (pela ordem apresentada) encontradas em:
http://www.eb1-vale-remigio.rcts.pt/act.htm
http://www.imagensdeposito.com/casa/40544/casa+da+bruxas.html
http://dancaharah.blogspot.com/2009/10/dia-das-bruxasa-bruxa-do-dia.html
http://ebvpancora5a.blogspot.com/2010/10/vassoura-magica-da-maria.html
ADENDA via e-mail recebido de Bruxelas enviado pela minha filha Maria Isabel:
Esta história da bruxa foi super-cómica. Ainda me lembro de um dos miúdos mais malandros estar à frente do grupo a chamar pela bruxa e, quando apareci de surpresa, ficou com os olhos esbugalhados e desatou a correr a gritar que afinal havia mesmo uma bruxa. Quando vi o ar atrapalhado de alguns deles, comecei a distribuir rebuçados para que não ficassem dúvidas de que era uma bruxa boa. Tive que inventar uma história louca que a minha vassoura estava estragada e que tinha que a pôr a arranjar, pois eles queriam à força que eu voasse. Boas recordações :-)
Havia no Jardim de Infância um canto revestido a tijoleira com um fogão a lenha bem preto e sugestivo. Era a casa da bruxa. Tínhamos já feito um grande chapéu bicudo em cartolina preta e a bruxa tinha também disfarces e adereços: um xaile, o lenço para a cabeça, o espelho mágico, uma cesta de maçãs, uma grande colher de pau e claro... lenha para o lume.
Nessa casa, coisas mirabolantes aconteciam todos os dias. Faltava a vassoura mágica, importantíssima para os arrojados voos da bruxa pela sala... Foi assim que no dia da feira mensal partimos à procura de uma vassoura, daquelas mágicas. Não foi sem algum receio que o grupo se aproximou do senhor que vendia vassouras de milho painço. Decididamente, um velhote que vende vassouras voadoras, só pode ser um bruxo disfarçado... mas lá se fez a escolha e a compra foi feita. Claro que no regresso ao Jardim de Infância já iam três montados na vassoura. É verdade que de início, para alguns, foi de certo modo uma decepção verificarem que a vassoura não os levava realmente pelos ares, mas depois todos entraram na fantasia do jogo e a vassoura todos os dias voava nas nossas histórias.
A partir daí, nos nossos passeios pelo pinhal, aconteciam coisas misteriosas e divertidas... o barulho de um avião era a bruxa voando apressada na sua vassoura e o depósito da água passou a ser a casa da bruxa. Assim, sempre que aí passávamos havia batidelas na porta, perguntas e provocações feitas à bruxa, desafios sem resposta; a bruxa era muito dorminhoca.
Foi por essa altura que chegou a Tábua uma visita, a minha irmã Isabel, que por coincidência reunia na altura características típicas das nossas bruxas... vestida de negro, saia comprida, dois brincos numa orelha e um corte de cabelo que lhe deixava na nuca uma madeixa mais comprida. A juntar a isto... um sentido de humor muito especial.
De repente surgiu a ideia... A Isabel ia ser bruxa durante uma semana. Uma bruxa simpática e divertida que deixasse saudades em Tábua.
Para dar credibilidade à situação, nada como fazê-la aparecer no pinhal. Foi assim que uma manhã deixei a Isabel de chapéu de cartolina e vassoura de milho painço no depósito da água, esperando a nossa visita. No passeio pelo pinhal o grupo sentou-se à sombra do depósito para lanchar e surgiram como habitualmente os desafios à bruxa... e a bruxa apareceu mesmo, com um grande sorriso. Desta vez não estava a dormir... O momento foi de emoção e silêncio, mas logo apareceram balões multicores que a bruxa ia dando enquanto explicava que viera de Lisboa na sua vassoura...
Um minuto depois choviam perguntas... «Tu és mesmo uma bruxa?»... «Vieste de Lisboa sempre a voar?»... «Oh bruxa, nós lá na escola temos um chapéu e uma vassoura assim... não foste lá roubar dentro?»... «Por que é que tens o sol e a lua nessa orelha?»... «A tua vassoura voa mesmo? Voa lá um bocadinho...». A bruxa não tinha descanso e as respostas loucas que dava punham o grupo a rir. Contou peripécias da viagem, segredos de magias... e acabaram todos a fazer a dança das bruxas aos pulos pelo pinhal. Claro que à hora de almoço todos queriam levar a bruxa para casa, mas expliquei que ela era minha convidada especial e ia ficar uns dias comigo.
Foi assim que começou a semana das bruxarias... Todos os dias a bruxa aparecia na escola e tudo rodava à volta dela, das histórias que ela contava, das danças e jogos que ensinava, das magias que fazia.
Até que uma das crianças se lembrou que eu já lhes falara de uma irmã chamada Isabel... «Oh Lena, eu acho é que esta bruxa é a tua irmã de Lisboa.»
Deixei-os na dúvida... Com o tempo, e depois do regresso da bruxa a Lisboa, todos eles descobriram que o era realmente e, no entanto, a magia continuou. Quiseram escrever cartas à bruxinha Isabel e desenhar «retratos» dela. Mandaram uma cassette com as suas recordações e mensagens gravadas. Pediam-lhe constantemente que voltasse a Tábua.
E ainda hoje, dois anos depois, chegam cartas de Tábua com beijos para a bruxinha. Uma bruxa que aterrou em Tábua... um dia... por acaso.
Crónica de Maria Helena Pinheiro Martinho publicada
na revista Cadernos de Educação de Infância, N.º 8, 1988
NOTA
Relato de uma situação passada no ano lectivo de 1985/1986 no Jardim de Infância de Tábua (Coimbra).
Ilustrações (pela ordem apresentada) encontradas em:
http://www.eb1-vale-remigio.rcts.pt/act.htm
http://www.imagensdeposito.com/casa/40544/casa+da+bruxas.html
http://dancaharah.blogspot.com/2009/10/dia-das-bruxasa-bruxa-do-dia.html
http://ebvpancora5a.blogspot.com/2010/10/vassoura-magica-da-maria.html
ADENDA via e-mail recebido de Bruxelas enviado pela minha filha Maria Isabel:
Esta história da bruxa foi super-cómica. Ainda me lembro de um dos miúdos mais malandros estar à frente do grupo a chamar pela bruxa e, quando apareci de surpresa, ficou com os olhos esbugalhados e desatou a correr a gritar que afinal havia mesmo uma bruxa. Quando vi o ar atrapalhado de alguns deles, comecei a distribuir rebuçados para que não ficassem dúvidas de que era uma bruxa boa. Tive que inventar uma história louca que a minha vassoura estava estragada e que tinha que a pôr a arranjar, pois eles queriam à força que eu voasse. Boas recordações :-)
quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011
Horizonte
No horizonte
o sol esconde-se
e regressa.
O livro abre-se
e fecha-se, sem pressa,
exactamente a meio
numa linha inventada
aparente, irreal
que liga o céu à Terra
a página à página
o desenho ao poema
o sol ao sal.
Poema de Teresa Martinho Marques (http://sabordepalavra.blogspot.com/)
in Das Palavras, Edições Eterogémeas (http://www.eterogemeas.com/)
ilustrado por Paulo Miguel Pinheiro Martinho (http://pintapalavras.blogspot.com/)
o sol esconde-se
e regressa.
O livro abre-se
e fecha-se, sem pressa,
exactamente a meio
numa linha inventada
aparente, irreal
que liga o céu à Terra
a página à página
o desenho ao poema
o sol ao sal.
Poema de Teresa Martinho Marques (http://sabordepalavra.blogspot.com/)
in Das Palavras, Edições Eterogémeas (http://www.eterogemeas.com/)
ilustrado por Paulo Miguel Pinheiro Martinho (http://pintapalavras.blogspot.com/)
terça-feira, 22 de fevereiro de 2011
Pontos de vista ou a esfera bicolor
Numa manhã de Maio de 1974, preparava-me eu para sair de casa para ir trabalhar, recebi um telefonema. Um membro da Associação de Pais da Escola Preparatória Luís António Verney (Lisboa), a que eu pertencia, porque os meus filhos mais velhos a frequentavam, pedia-me para comparecer. “Venha depressa. O ambiente está agitado. Os alunos estão em greve!”.
A minha primeira reacção foi de surpresa. Miúdos em greve?! Pensei que haveria ali algum exagero. Nos dias conturbados que se seguiram ao reencontro de Portugal com a democracia, havia agitação na Universidade e nas escolas secundárias, mas não constava que o movimento se tivesse estendido às escolas preparatórias. Assim, foi com expectativa que meti os pés a caminho do bairro da Madre de Deus.
Quando lá cheguei, era grande a confusão... e a greve uma realidade. Havia movimento e vozearia, alunos excitados que discutiam em grupos, pais atónitos que não percebiam o que se estava a passar, outros que ofereciam tabefes aos filhos perante aquela rebeldia inesperada, professores que procuravam acalmar os ânimos, membros da Associação de Pais que tentavam ajudar os professores a organizar o caos.
E foi assim que me vi metido numa sala de aula, sentado à secretária do professor, tendo na frente uma trintena de jovens com idades à volta dos 12 anos. Havia-se combinado antes que se fariam primeiro reuniões parcelares, a nível de turma, para conhecer e debater as razões de queixa dos alunos. A seguir, haveria uma reunião geral no ginásio, onde se procuraria identificar os problemas mais prementes, como primeiro passo para (tentar) solucioná-los.
Iniciado o debate na sala de aula, cedo me apercebi que a tarefa não ia ser fácil. De facto, a experiência da vida mostra que o diálogo, em geral, é um exercício complicado. Não poucas vezes, um diálogo transforma-se num somatório de monólogos..., situação que equivale ao chamado diálogo de surdos. Para comunicar, é necessário acertar os códigos de linguagem, assegurar que não estão uns a falar em alhos e outros em bugalhos. Para comunicar, é necessário saber ouvir, importa fazer um esforço no sentido de compreender o ponto de vista do outro. Em suma, comunicar é uma tarefa que exige uma atitude de generosidade e humildade, o que é difícil. Se a isto se juntar um clima de contestação, opondo pessoas de gerações muito diferentes, pode-se imaginar o aperto em que me vi metido.
Foi então que tive uma ideia salvadora. Pedi aos jovens uns minutos de atenção, para lhes propor um enigma semelhante ao que estávamos a viver, em que, animados de boa vontade, dizíamos coisas uns aos outros mas não conseguíamos entender-nos. Julgando talvez que ia contar-lhes uma história, fez-se silêncio. “Imaginem que em cima da secretária está uma esfera grande e suponham que, em verdade, eu digo que a esfera é verde e vocês afirmam que a esfera é vermelha. Como explicar isto?”
Apanhados de surpresa, ficaram a pensar no assunto. Então, a pouco e pouco, fui encaminhando-os para a solução do problema. Levei-os a compreender que, se trocássemos de posição, eles poderiam observar o que eu via e eu poderia observar o que eles viam. E concluiríamos que, afinal, a chave do enigma era simples: a esfera era bicolor! Embora o objecto fosse o mesmo, a perspectiva em relação a ele era diferente, portanto as afirmações eram diferentes. E, no entanto, ambas eram respeitáveis, porque honestas.
A rapaziada percebeu a mensagem. O ambiente modificou-se. O prazer do entendimento estabeleceu-se. Finalmente, o diálogo aconteceu. E eu nunca mais esqueci a esfera bicolor daquela manhã de Maio!
Crónica publicada no jornal O MIRANTE em 27.Abril.1993
Ilustrações:
http://www.museudapessoa.net (1.ª)
http://vaninha-pedagogia.blogspot.com (3.ª)
A minha primeira reacção foi de surpresa. Miúdos em greve?! Pensei que haveria ali algum exagero. Nos dias conturbados que se seguiram ao reencontro de Portugal com a democracia, havia agitação na Universidade e nas escolas secundárias, mas não constava que o movimento se tivesse estendido às escolas preparatórias. Assim, foi com expectativa que meti os pés a caminho do bairro da Madre de Deus.
Quando lá cheguei, era grande a confusão... e a greve uma realidade. Havia movimento e vozearia, alunos excitados que discutiam em grupos, pais atónitos que não percebiam o que se estava a passar, outros que ofereciam tabefes aos filhos perante aquela rebeldia inesperada, professores que procuravam acalmar os ânimos, membros da Associação de Pais que tentavam ajudar os professores a organizar o caos.
E foi assim que me vi metido numa sala de aula, sentado à secretária do professor, tendo na frente uma trintena de jovens com idades à volta dos 12 anos. Havia-se combinado antes que se fariam primeiro reuniões parcelares, a nível de turma, para conhecer e debater as razões de queixa dos alunos. A seguir, haveria uma reunião geral no ginásio, onde se procuraria identificar os problemas mais prementes, como primeiro passo para (tentar) solucioná-los.
Iniciado o debate na sala de aula, cedo me apercebi que a tarefa não ia ser fácil. De facto, a experiência da vida mostra que o diálogo, em geral, é um exercício complicado. Não poucas vezes, um diálogo transforma-se num somatório de monólogos..., situação que equivale ao chamado diálogo de surdos. Para comunicar, é necessário acertar os códigos de linguagem, assegurar que não estão uns a falar em alhos e outros em bugalhos. Para comunicar, é necessário saber ouvir, importa fazer um esforço no sentido de compreender o ponto de vista do outro. Em suma, comunicar é uma tarefa que exige uma atitude de generosidade e humildade, o que é difícil. Se a isto se juntar um clima de contestação, opondo pessoas de gerações muito diferentes, pode-se imaginar o aperto em que me vi metido.
Foi então que tive uma ideia salvadora. Pedi aos jovens uns minutos de atenção, para lhes propor um enigma semelhante ao que estávamos a viver, em que, animados de boa vontade, dizíamos coisas uns aos outros mas não conseguíamos entender-nos. Julgando talvez que ia contar-lhes uma história, fez-se silêncio. “Imaginem que em cima da secretária está uma esfera grande e suponham que, em verdade, eu digo que a esfera é verde e vocês afirmam que a esfera é vermelha. Como explicar isto?”
Apanhados de surpresa, ficaram a pensar no assunto. Então, a pouco e pouco, fui encaminhando-os para a solução do problema. Levei-os a compreender que, se trocássemos de posição, eles poderiam observar o que eu via e eu poderia observar o que eles viam. E concluiríamos que, afinal, a chave do enigma era simples: a esfera era bicolor! Embora o objecto fosse o mesmo, a perspectiva em relação a ele era diferente, portanto as afirmações eram diferentes. E, no entanto, ambas eram respeitáveis, porque honestas.
A rapaziada percebeu a mensagem. O ambiente modificou-se. O prazer do entendimento estabeleceu-se. Finalmente, o diálogo aconteceu. E eu nunca mais esqueci a esfera bicolor daquela manhã de Maio!
Crónica publicada no jornal O MIRANTE em 27.Abril.1993
Ilustrações:
http://www.museudapessoa.net (1.ª)
http://vaninha-pedagogia.blogspot.com (3.ª)
segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011
domingo, 20 de fevereiro de 2011
Tríptico "Formas nas Rochas"
Selecção de três fotografias do geólogo Fernando Ornelas Marques de entre as muitas que tem publicado no seu blogue http://cronicasdealem.blogspot.com sobre "formas nas rochas”.
sábado, 19 de fevereiro de 2011
quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011
No tempo da Carolina...
Há, na vida de todos nós, rituais e pessoas que, sem conseguirmos explicar porquê, nos são tão importantes que lhes reservamos um lugar apesar da separação, da distância, da morte...
A Carolina era aquela senhora de cabelo grisalho e sorriso simpático que ajudava a Mãe nas limpezas. Era também uma companheira de sonhos e aventuras quando os pais se ausentavam. Nesses momentos a Carolina não tinha descanso. Éramos quatro a desafiá-la, à porta da cozinha, para que largasse o alguidar da louça. Por vezes éramos nós que acabávamos a passar pratos e copos, junto ao alguidar enorme, cheio de água. E assim, com as mãos quentinhas, conversávamos longamente com a Carolina...
Noutros dias éramos índios e morávamos numa cabana, na varanda. Um cobertor entalado entre a janela do quarto e o parapeito da varanda servia de toldo. E ali ficávamos em aventuras pelo quarto e recolhendo-nos para as refeições trazidas pela Carolina. Até a salada de fruta era mágica... e mágicos eram os momentos em que a Carolina se transformava em cavalo índio, companheiro de aventuras.
Em dias mais calmos, a Carolina deixava a louça esperar por momentos... assim que ouvia: "Já está!". E então era prender a respiração e esperar que o nosso esconderijo fosse o melhor...
A Carolina morava na praceta. A mesma praceta da nossa casa. Mas a casa dela não era como as outras. Era como a Carolina... cheia de surpresas e coisas especiais. A magia começava cá fora. Aquele recanto dos brincos-de-princesa era a porta para um mundo diferente. E lá dentro havia de tudo... até uma barbearia de enormes cadeiras de recosto, de um verde apagado, onde víamos passar os homens da terra.
Umas estreitas escadas em madeira escura levavam-nos ao primeiro andar... O quarto das costuras será sempre para mim o quarto dos botões. Das caixas de papelão saiam dezenas deles... uma autêntica colecção que se espalhava no chão e entrava no jogo. Botões grandes e pequenos, rasos, curvos, rugosos e lisos, brilhantes... botões de todas as cores e formas... botões de madeira, veludo, latão, madrepérola... um desafio à imaginação e à invenção de toda a espécie de jogos. Nesse quarto passávamos tardes a brincar. Ali no chão, ao nosso lado, começava o vaivém do pedal da máquina antiga, onde a Carolina cosia. E aquele embalo vibrante do som, ora pára ora anda... fazia-nos perder a noção do tempo.
O quarto da Carolina tinha uma janela especial. Lá de cima dominávamos a praceta e o jardim. A janela contava todas as histórias boas e más que aconteciam na terra. Festas, procissões e carnavais desfilavam sem descobrir o nosso recanto secreto... a lama das cheias, os estragos, eram olhados de longe por trás do vidro...
E a janela erguia-se como um escudo protector quando os tempos eram maus e havia medo no ar.
E a Carolina estava lá, nesse tempo.
E ria e cantava e contava histórias.
E tudo voltava a ser bom.
Não era transparente... não voava... mas era a pessoa que eu conhecia mais parecida com uma fada...
Texto de homenagem (a uma pessoa especial) escrito por Helena Martinho
e publicado na revista Cadernos de Educação de Infância, n.º 13, 1990
ADENDA 1 – Depois de ter lido esta entrada, a minha filha Maria Helena enviou-me o seguinte e-mail: Gostei de reler o artigo... já nem me lembrava bem dele... ainda bem que o escrevi naquele momento. Acho que revela uma parte daquilo que nós quatro tivémos a sorte de viver na infância. Qual TV? qual computador? quais jogos comprados...? sem materiais ou quase só com o material "imaginação", palavras, e alguns botões... as coisas que nós vivíamos! Uma querida, a Carolina. Terá ganho a sua imortalidade na lembrança que ainda temos dela.
ADENDA 2 - E-mail recebido de Bruxelas enviado pela minha filha Maria Isabel: Está muito bonito. Não tenho todas estas recordações. Acho que era muito pequena. Guardo na lembrança breves momentos com a Carolina, em casa, no alguidar, a entrada da casa dela, por isso é óptimo ler o artigo da Lena que completa essas memórias da vida em Alverca.
A Carolina era aquela senhora de cabelo grisalho e sorriso simpático que ajudava a Mãe nas limpezas. Era também uma companheira de sonhos e aventuras quando os pais se ausentavam. Nesses momentos a Carolina não tinha descanso. Éramos quatro a desafiá-la, à porta da cozinha, para que largasse o alguidar da louça. Por vezes éramos nós que acabávamos a passar pratos e copos, junto ao alguidar enorme, cheio de água. E assim, com as mãos quentinhas, conversávamos longamente com a Carolina...
Noutros dias éramos índios e morávamos numa cabana, na varanda. Um cobertor entalado entre a janela do quarto e o parapeito da varanda servia de toldo. E ali ficávamos em aventuras pelo quarto e recolhendo-nos para as refeições trazidas pela Carolina. Até a salada de fruta era mágica... e mágicos eram os momentos em que a Carolina se transformava em cavalo índio, companheiro de aventuras.
Em dias mais calmos, a Carolina deixava a louça esperar por momentos... assim que ouvia: "Já está!". E então era prender a respiração e esperar que o nosso esconderijo fosse o melhor...
A Carolina morava na praceta. A mesma praceta da nossa casa. Mas a casa dela não era como as outras. Era como a Carolina... cheia de surpresas e coisas especiais. A magia começava cá fora. Aquele recanto dos brincos-de-princesa era a porta para um mundo diferente. E lá dentro havia de tudo... até uma barbearia de enormes cadeiras de recosto, de um verde apagado, onde víamos passar os homens da terra.
Umas estreitas escadas em madeira escura levavam-nos ao primeiro andar... O quarto das costuras será sempre para mim o quarto dos botões. Das caixas de papelão saiam dezenas deles... uma autêntica colecção que se espalhava no chão e entrava no jogo. Botões grandes e pequenos, rasos, curvos, rugosos e lisos, brilhantes... botões de todas as cores e formas... botões de madeira, veludo, latão, madrepérola... um desafio à imaginação e à invenção de toda a espécie de jogos. Nesse quarto passávamos tardes a brincar. Ali no chão, ao nosso lado, começava o vaivém do pedal da máquina antiga, onde a Carolina cosia. E aquele embalo vibrante do som, ora pára ora anda... fazia-nos perder a noção do tempo.
O quarto da Carolina tinha uma janela especial. Lá de cima dominávamos a praceta e o jardim. A janela contava todas as histórias boas e más que aconteciam na terra. Festas, procissões e carnavais desfilavam sem descobrir o nosso recanto secreto... a lama das cheias, os estragos, eram olhados de longe por trás do vidro...
E a janela erguia-se como um escudo protector quando os tempos eram maus e havia medo no ar.
E a Carolina estava lá, nesse tempo.
E ria e cantava e contava histórias.
E tudo voltava a ser bom.
Não era transparente... não voava... mas era a pessoa que eu conhecia mais parecida com uma fada...
Texto de homenagem (a uma pessoa especial) escrito por Helena Martinho
e publicado na revista Cadernos de Educação de Infância, n.º 13, 1990
ADENDA 1 – Depois de ter lido esta entrada, a minha filha Maria Helena enviou-me o seguinte e-mail: Gostei de reler o artigo... já nem me lembrava bem dele... ainda bem que o escrevi naquele momento. Acho que revela uma parte daquilo que nós quatro tivémos a sorte de viver na infância. Qual TV? qual computador? quais jogos comprados...? sem materiais ou quase só com o material "imaginação", palavras, e alguns botões... as coisas que nós vivíamos! Uma querida, a Carolina. Terá ganho a sua imortalidade na lembrança que ainda temos dela.
ADENDA 2 - E-mail recebido de Bruxelas enviado pela minha filha Maria Isabel: Está muito bonito. Não tenho todas estas recordações. Acho que era muito pequena. Guardo na lembrança breves momentos com a Carolina, em casa, no alguidar, a entrada da casa dela, por isso é óptimo ler o artigo da Lena que completa essas memórias da vida em Alverca.
quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011
terça-feira, 15 de fevereiro de 2011
Notáveis da praia de Santa Cruz
segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011
sábado, 12 de fevereiro de 2011
Tempo de amizades
Com a aproximação do mês de Agosto, agitava-se a vida lá em casa. Todos preparavam as férias com entusiasmo. As crianças idealizavam, há tempo já, as primeiras brincadeiras de Verão na praia de Santa Cruz, com a areia e os banhos. Tinham saudades daquele mar quase sempre "indisposto", mas belo.
O senhor João vinha buscá-los cedo no primeiro dia de Agosto, para os levar no seu táxi. A bagagem acumulava-se no átrio. A mãe preparara as roupas e... tudo o mais, enquanto o pai dava sugestões no meio daquela azáfama. Para os pequenitos, o mais importante era não esquecer o saco com os baldes, as pás, as formas, as bolas e os livros.
Foi assim durante anos. Na pensão Miramar onde se acolhiam, a D. Conceíção recebia os hóspedes com grande afabilidade. Que boa comida fazia o velho cozinheiro (ai, aquelas conchas recheadas!). O seu grande chapéu branco espantava e divertia os mais pequenos. Após o jantar, enquanto o sol se escondia, as crianças organizavam ainda, apesar do cansaço, os últimos jogos e correrias. Os pais cavaqueavam na varanda ou na sala de entrada junto ao velho piano. Televisão não havia, felizmente. Tempo bom de lazer! Recolhiam cedo. "Quem acordar primeiro, chama os outros, combinado?" - cochichavam os miúdos.
As brincadeiras com as caricas, as lutas com as almofadas ao fim do dia, a caça aos peixinhos junto às rochas (que eram devolvidos ao mar, diga-se), tudo pertence ao passado. Eles e os amigos cresceram e foram-se dispersando.
Mas os pais voltam sempre que podem à praia. De quando em quando juntam-se aos filhos e os amigos de todos aparecem também. O reencontro é sempre motivo de alegria.
Esses foram, sem dúvida, tempos bonitos de amizade.
Crónica de Maria da Piedade Pinheiro Martinho publicada no jornal O MIRANTE em Março.1990
O senhor João vinha buscá-los cedo no primeiro dia de Agosto, para os levar no seu táxi. A bagagem acumulava-se no átrio. A mãe preparara as roupas e... tudo o mais, enquanto o pai dava sugestões no meio daquela azáfama. Para os pequenitos, o mais importante era não esquecer o saco com os baldes, as pás, as formas, as bolas e os livros.
Foi assim durante anos. Na pensão Miramar onde se acolhiam, a D. Conceíção recebia os hóspedes com grande afabilidade. Que boa comida fazia o velho cozinheiro (ai, aquelas conchas recheadas!). O seu grande chapéu branco espantava e divertia os mais pequenos. Após o jantar, enquanto o sol se escondia, as crianças organizavam ainda, apesar do cansaço, os últimos jogos e correrias. Os pais cavaqueavam na varanda ou na sala de entrada junto ao velho piano. Televisão não havia, felizmente. Tempo bom de lazer! Recolhiam cedo. "Quem acordar primeiro, chama os outros, combinado?" - cochichavam os miúdos.
As brincadeiras com as caricas, as lutas com as almofadas ao fim do dia, a caça aos peixinhos junto às rochas (que eram devolvidos ao mar, diga-se), tudo pertence ao passado. Eles e os amigos cresceram e foram-se dispersando.
Mas os pais voltam sempre que podem à praia. De quando em quando juntam-se aos filhos e os amigos de todos aparecem também. O reencontro é sempre motivo de alegria.
Esses foram, sem dúvida, tempos bonitos de amizade.
Crónica de Maria da Piedade Pinheiro Martinho publicada no jornal O MIRANTE em Março.1990
quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011
quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011
segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011
Um Jardim de Infância onde tudo pode acontecer
Há uns anos, a minha irmã Lena [Helena Martinho, Educadora no Jardim de Infância do Vimeiro] encomendou à Amazon uns livros para os seus meninos. Explicou-lhes que o havia feito e que os livros viriam de avião… e teriam que passar por vários meios de transporte até chegarem às suas mãos…
Oh Lena! Achas que o avião podia passar por aqui e deixar cair os livros para não se gastar tanto tempo?
Hummmmm. Talvez... Acho que vou falar com eles...
Nascida ali a ideia, foi ao aeroclube da zona [Santa Cruz, Torres Vedras] e convenceu um dos pilotos a fazer um voo sobre o jardim, em dia a combinar. O resto ficaria por conta dela.
Uma costureira, avó de uma das crianças, em segredo construíu um pára-quedas grande e colorido. Depois a Lena aguardou a chegada dos livros. Atou-os ao pára-quedas e escondeu tudo. No dia certo, à hora combinada, momento de recreio, um contacto do piloto por telemóvel anunciava estarem os motores a aquecer… passados poucos minutos já o avião fazia vários voos sobre o Jardim, luzes acendendo e apagando, piloto acenando... (ela soube mais tarde que algumas pessoas da zona, surpresas, haviam telefonado ao aeroclube preocupadas com as manobras.)
As crianças, que ao longo do tempo foram sendo preparadas para a possibilidade, ficaram agitadas e felizes:
Lena! Lena! Deve ser o avião que traz os nossos livros!!!! Vamos ver! Vamos ver!
Sim, sim... mas primeiro vão já com a Cristina lavar as mãos porque está quase na hora do almoço e depois vêm ter comigo lá fora.
Saíu a correr, trepou a uma árvore com atrapalhação e prendeu o pára-quedas como se este tivesse caído dos céus e ali tivesse ficado suspenso...
Conseguem imaginar a festa, a alegria das crianças quando vieram ao exterior e deram com os livros na árvore? Pois...
E aqueles livros, para sempre com um significado especial, tornaram-se durante muito tempo o centro da vida... já fazendo crescer água na boca pelo aprender a ler um dia e decifrar-lhes todos os mistérios escondidos nas palavras...
Teresa Martinho Marques
http://tempodeteia.blogspot.com
Ilustração: http://kadaideia.blogspot.com
Oh Lena! Achas que o avião podia passar por aqui e deixar cair os livros para não se gastar tanto tempo?
Hummmmm. Talvez... Acho que vou falar com eles...
Nascida ali a ideia, foi ao aeroclube da zona [Santa Cruz, Torres Vedras] e convenceu um dos pilotos a fazer um voo sobre o jardim, em dia a combinar. O resto ficaria por conta dela.
Uma costureira, avó de uma das crianças, em segredo construíu um pára-quedas grande e colorido. Depois a Lena aguardou a chegada dos livros. Atou-os ao pára-quedas e escondeu tudo. No dia certo, à hora combinada, momento de recreio, um contacto do piloto por telemóvel anunciava estarem os motores a aquecer… passados poucos minutos já o avião fazia vários voos sobre o Jardim, luzes acendendo e apagando, piloto acenando... (ela soube mais tarde que algumas pessoas da zona, surpresas, haviam telefonado ao aeroclube preocupadas com as manobras.)
As crianças, que ao longo do tempo foram sendo preparadas para a possibilidade, ficaram agitadas e felizes:
Lena! Lena! Deve ser o avião que traz os nossos livros!!!! Vamos ver! Vamos ver!
Sim, sim... mas primeiro vão já com a Cristina lavar as mãos porque está quase na hora do almoço e depois vêm ter comigo lá fora.
Saíu a correr, trepou a uma árvore com atrapalhação e prendeu o pára-quedas como se este tivesse caído dos céus e ali tivesse ficado suspenso...
Conseguem imaginar a festa, a alegria das crianças quando vieram ao exterior e deram com os livros na árvore? Pois...
E aqueles livros, para sempre com um significado especial, tornaram-se durante muito tempo o centro da vida... já fazendo crescer água na boca pelo aprender a ler um dia e decifrar-lhes todos os mistérios escondidos nas palavras...
Teresa Martinho Marques
http://tempodeteia.blogspot.com
Ilustração: http://kadaideia.blogspot.com
domingo, 6 de fevereiro de 2011
terça-feira, 1 de fevereiro de 2011
O enigma da virgulação
Era uma vez uma vírgula bem colocada num texto, algures num decreto-lei. Não tinha bem consciência do seu valor. Dizia-se, porém, que tinha sido debitada por um ministro, pela módica quantia de 120 mil contos, numa folha de papel timbrado, daquelas que são, ou deviam ser, “A Bem da Nação”. É verdade que se sentira lisonjeada por ter sido desenhada por uma Parker dourada, mas, à parte isso, era uma vírgula modesta, bem comportada, que desejava apenas que a deixassem sossegada.
Estava a pobre coitada no tranquilo desempenho da sua função, quando, de repente, citada na televisão por uma jornalista e retomada depois num jornal pela pena de um deputado, a vírgula saiu inesperadamente do anonimato, tendo sido catapultada da sua condição de insignificância para a posição de autêntica vedeta do PdB (sigla de País das Bananas, onde se passou esta história). [É claro que uma tal projecção fez com que muitos ficassem roídos de inveja, com a ciumeira própria dos ignorados. Cada um manifestou-se à sua maneira: os estupefactos alinharam com os pontos de exclamação, os incrédulos juntaram-se aos pontos de interrogação e os peremptórios fizeram coro com os pontos finais.]
Não fosse o diabo tecê-las, o Grande Chefe levou duas semanas a abalançar-se na denúncia pública do perigo que seria deixar pairar a dúvida sobre a credibilidade das vírgulas nos decretos-lei do seu país. Compreende-se a hesitação: aquela vírgula poderia ser um trunfo para, ou contra, os adversários. Ganha a necessária afoiteza, foi anunciado aos quatro ventos: “É preciso esclarecer o caso da vírgula!”.
Entretanto, os PdBeses, que, apesar de serem um povo sofrido, tinham um grande sentido de humor, foram-se a elas, às vírgulas, e foi um regalo. Houve de tudo na brincadeira. Glosaram-nas em todos os tons, escreveram artigos, alguns sem pontuação (como fazia a Guidinha, nas suas redacções de boa memória), inventaram anedotas, compuseram cantigas, eu sei lá. Se tivesse sido dada uma ordem ao Banco Central das Vírgulas para lançá-las no mercado para regularizar o sistema, a inundação não teria sido maior.
Quanto aos partidos políticos representados no Parlamento, uns eram de opinião que se devia ir à procura da vírgula, e mesmo de outras vírgulas malparadas, outros manifestavam a sua perplexidade perante tanto zelo neste caso e o deixa-andar-Maria-vai-com-as-outras noutros casos virgulentos, e os restantes entendiam que o Parlamento não devia lançar-se em correrias atrás da primeira vírgula que lhes pusessem à frente. Por fim, os parlamentares acordaram na ideia altamente original e inovadora de criar uma comissão para deslindar o mistério. Sabe-se que foram distribuídas lupas pelos membros da Comissão de Inquérito à Vírgula. Ignora-se o resto.
Tudo indica que esta história, como outras, terminará bem. Provavelmente a vírgula casa-se com um ponto, têm um filho, o ponto e vírgula, e são felizes para sempre.
Texto publicado no jornal O MIRANTE em 02.Março.1993
Estava a pobre coitada no tranquilo desempenho da sua função, quando, de repente, citada na televisão por uma jornalista e retomada depois num jornal pela pena de um deputado, a vírgula saiu inesperadamente do anonimato, tendo sido catapultada da sua condição de insignificância para a posição de autêntica vedeta do PdB (sigla de País das Bananas, onde se passou esta história). [É claro que uma tal projecção fez com que muitos ficassem roídos de inveja, com a ciumeira própria dos ignorados. Cada um manifestou-se à sua maneira: os estupefactos alinharam com os pontos de exclamação, os incrédulos juntaram-se aos pontos de interrogação e os peremptórios fizeram coro com os pontos finais.]
Não fosse o diabo tecê-las, o Grande Chefe levou duas semanas a abalançar-se na denúncia pública do perigo que seria deixar pairar a dúvida sobre a credibilidade das vírgulas nos decretos-lei do seu país. Compreende-se a hesitação: aquela vírgula poderia ser um trunfo para, ou contra, os adversários. Ganha a necessária afoiteza, foi anunciado aos quatro ventos: “É preciso esclarecer o caso da vírgula!”.
Entretanto, os PdBeses, que, apesar de serem um povo sofrido, tinham um grande sentido de humor, foram-se a elas, às vírgulas, e foi um regalo. Houve de tudo na brincadeira. Glosaram-nas em todos os tons, escreveram artigos, alguns sem pontuação (como fazia a Guidinha, nas suas redacções de boa memória), inventaram anedotas, compuseram cantigas, eu sei lá. Se tivesse sido dada uma ordem ao Banco Central das Vírgulas para lançá-las no mercado para regularizar o sistema, a inundação não teria sido maior.
Quanto aos partidos políticos representados no Parlamento, uns eram de opinião que se devia ir à procura da vírgula, e mesmo de outras vírgulas malparadas, outros manifestavam a sua perplexidade perante tanto zelo neste caso e o deixa-andar-Maria-vai-com-as-outras noutros casos virgulentos, e os restantes entendiam que o Parlamento não devia lançar-se em correrias atrás da primeira vírgula que lhes pusessem à frente. Por fim, os parlamentares acordaram na ideia altamente original e inovadora de criar uma comissão para deslindar o mistério. Sabe-se que foram distribuídas lupas pelos membros da Comissão de Inquérito à Vírgula. Ignora-se o resto.
Tudo indica que esta história, como outras, terminará bem. Provavelmente a vírgula casa-se com um ponto, têm um filho, o ponto e vírgula, e são felizes para sempre.
Texto publicado no jornal O MIRANTE em 02.Março.1993
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