terça-feira, 30 de novembro de 2010

Fernando Pessoa morreu há 75 anos

Trabalho de Paulo Miguel Pinheiro Martinho (2010)
incluido no seu blogue http://madeiraviva.blogspot.com/

Um dia a maioria de nós irá separar-se.
Sentiremos saudades de todas as conversas jogadas fora, das descobertas que fizemos, dos sonhos que tivemos, dos tantos risos e momentos que partilhamos.
Saudades até dos momentos de lágrimas, da angústia, das vésperas dos finais de semana, dos finais de ano, enfim... do companheirismo vivido.
Sempre pensei que as amizades continuassem para sempre. Hoje não tenho mais tanta certeza disso.
Em breve cada um vai para seu lado, seja pelo destino ou por algum desentendimento, segue a sua vida.
Talvez continuemos a nos encontrar, quem sabe... nas cartas que trocaremos. Podemos falar ao telefone e dizer algumas tolices...
Aí, os dias vão passar, meses... anos... até este contacto se tornar cada vez mais raro. Vamo-nos perder no tempo...
Um dia os nossos filhos verão as nossas fotografias e perguntarão: Quem são aquelas pessoas?
Diremos... que eram nossos amigos e... isso vai doer tanto! Foram meus amigos, foi com eles que vivi tantos bons anos da minha vida!
A saudade vai apertar bem dentro do peito. Vai dar vontade de ligar, ouvir aquelas vozes novamente...
Quando o nosso grupo estiver incompleto... reunir-nos-emos para um último adeus de um amigo. E, entre lágrimas, abraçar-nos-emos. Então faremos promessas de nos encontrar mais vezes daquele dia em diante.
Por fim, cada um vai para o seu lado para continuar a viver a sua vida, isolada do passado. E perder-nos-emos no tempo...
Por isso, fica aqui um pedido deste humilde amigo: Não deixes que a vida passe em branco, e que pequenas adversidades sejam a causa de grandes tempestades...
Eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem todos os meus amigos!

Fernando Pessoa

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Hoje foi só o susto...

15 de Agosto, praia de Santa Cruz. Os que vêm para passar o feriado, juntam-se aos veraneantes habituais. Chegam cedo e, no meio de grande alarido, lá se vão instalando com a família. Trazem cestos, sacos, colchões, bolas, raquetes. As crianças ensaiam as primeiras traquinices. Os grandes gritam e prometem estalos, mas as brincadeiras vão durar todo o dia.

O mar está agitado. A bandeira vermelha balouça no mastro, informando os banhistas do perigo. O calor aperta, a água tenta e sempre acontecem acidentes. Alguns «habitués» postam-se defronte ao mar e aguardam, não se sabe bem o quê, mas aguardam.

De repente soa o alarme: alguém pede socorro. O alvoroço toma conta das gentes: uns correm esbaforidos, outros quedam-se e comentam. Há mesmo uma senhora que chora! Concentram-se no ponto, à beira-mar, mais próximo do sinistrado. No meio de toda a confusão gerada neste dia quente de Agosto, o banheiro atira-se à água para socorrer o incauto. Enquanto isso, mais gente corre pelo areal. Passam por nós duas mulheres: uma disforme, de carnes balofas, a outra mais jovem, com um dos seios esvoaçando ao léu. Soltara-se-lhe o fato de banho sem que disso se tenha apercebido! Todos rimos.

Entretanto, acalmam-se os ânimos. Chegam notícias.
- Já está!
- Está morto? - indaga a senhora que chorava.
- Não, foi só o susto.
Até ao fim do dia o assunto será este.

Encerra-se assim a festa do dia 15 de Agosto, aqui na praia de Santa Cruz. As famílias retiram-se com pena, arrastando os putos que, vencidos pelo cansaço, dão por terminadas as brincadeiras. O mar vai continuar revolto. A bandeira vermelha lá estará flutuando ao vento, amanhã e talvez até ao próximo fim-de-semana, e os incautos voltarão.


Crónica de Maria da Piedade Pinheiro Martinho publicada no jornal O Mirante em Agosto de 1989

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Ainda a greve geral

No passado mês de Março [1988], como é sabido, ocorreu um acontecimento significativo no nosso País: pela primeira vez, as duas centrais sindicais (União Geral de Trabalhadores e Confederação Geral de Trabalhadores Portugueses) convocaram uma greve geral para o mesmo dia, em manifestação de dis­cordância em relação à última versão da chamada “lei dos despedimentos” proposta pelo Governo. Dir-se-á que já está tudo dito sobre esta matéria. Talvez, depende do ponto de vista. De qualquer modo, pa­rece adequado deixar registado o facto nesta coluna, para que conste da memória colectiva deste Jornal. Uma forma de registo possível teria por base a recolha de afirmações e de passagens de escritos produ­zi­­dos sobre o acontecimento e suas repercussões. Foi esta a opção seguida.

O Governo não se senta mais à mesa das negociações.
António Capucho, ministro, 26-03-88

Foi a maior greve geral da história do movimento operário português.
Carvalho da Silva, coordenador-geral da CGTP, 28-03-88

Se há greve, eu não a notei. E se a greve é geral, muito menos; tão-pouco parcial. Eu diria, quan­do muito, parcialíssima.
Cavaco Silva, primeiro-ministro, 28-03-88

A adesão foi superior a 80 por cento, o que envolve mais de 1,7 milhões de trabalhadores.
Torres Couto, secretário-geral da UGT, 29-03-88

Em relação a 80 por cento do País, a greve passou despercebida.
Cavaco Silva, primeiro-ministro, 29-03-88).

A chamada greve geral não passou de um acontecimento efémero, algo que se esgotou num dia e que, portanto, pertence ao passado.
Fernando Nogueira, porta-voz do Conselho de Ministros, 31-03-88

Mesmo aqueles que não aderiram à greve geral de segunda-feira passada deverão reconhecer que a greve ultrapassou as expectativas. Goste-se ou não da UGT e da Intersindical, o facto é que a mensagem das centrais sindicaispassou”: ou seja, muitos trabalhadores convenceram-se de que, caso o pacote laboral venha a ser aprovado, os seus empregos ficarão em risco.
José António Saraiva, Expresso, 01-04-88

Não posso corroborar ou infirmar os números divulgados pelos sindicatos. Alguma impren­sa internacional tomou-os por bons, mas a maior parte da que eu li deu-lhes desconto em grau variá­vel. O que eu não encontrei foi um jornal, americano ou europeu, que desse qualquer crédito aos nú­meros do Governo.
Mas o facto de o Governo ter, ele próprio, sucumbido à tentação das ameaças tornou impre­cisas as fronteiras entre as condutas de cada um. E muitos dos que discordaram da greve queriam vê-la vencida por argumentos e meios limpos, e não por corrupções e ameaças.
Nuno Brederode Santos, Expresso, 16-04-88

E se os deputados do PSD não quiserem, como é natural que não queiram, remeter-se à in­có­­­­moda função decaixas de ressonânciado Governo, as consequências desta greve não deixarão de se fazer sentir no formato e na embalagem exterior, mas também no conteúdo, dopacote laboralque esteve na origem da acção grevista.
José Silva Pinto, O Jornal, 31-03-88

Intransigente, a bancada do PSD inviabilizou as mais de 70 propostas de alteração do pacote laboral do Governo apresentadas pela oposição. A bancada da maioria apenas foi flexível consigo própria, ao introduzir duas alterações e um aditamento ao texto do Executivo. E assim, horas e horas a fio, a oposição viu gorados todos os seus esforços para alterar um vírgula do texto.
Jerónimo Pimentel, Expresso, 16-03-88

Dizem uns:
«Não tiro nem uma vírgula
Dizem outros:
«Não cedo nem um milímetro
Não tirar nem uma vírgula é o primeiro passo para não tirar nem uma palavra. E, depois, um pe­ríodo. E, depois, um parágrafo. E, depois, uma página. E, por fim, o que quer que seja. Justamente, não tirar nem uma vírgula é não tirar coisa nenhuma.
Tal como não ceder nem um milímetro é o primeiro passo para não ceder nem um centímetro. E, depois, um metro. E, depois, um quilómetro. E, por fim, o que quer que seja. Precisamente, não ceder nem um milímetro é não ceder coisa nenhuma.
Mal vai o regime que se corta em arestas e se talha em abismos. Não é um regime, é uma pedreira.
Mal vai o regime que baliza as fronteiras da sua vontade, da sua acção, da sua afirmação, em vírgulas finais e em milímetros definitivos. Não é um regime, é um medo sitiado.
Ou é um totalitarismo ou não é, sequer formalmente, uma democracia.

Artur Portela, Diário de Notícias, 11-04-88


Artigo publicado no jornal O Mirante em Abril de 1988

Ilustração in http://cadernosemcapa.blogspot.com/2010/11/greve-geral-24-de-novembro-4.html

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Rómulo de Carvalho, um Professor de referência

No passado dia 24 de Novembro [1996], Rómulo de Carvalho completou 90 anos. O JL/Educação dedicou grande parte do número de 6 de Novembro a esta efeméride. Aí fui encontrar uma bela entrevista com este insigne Homem de Ciência, um «Professor, pedagogo, historiador e divulgador da Ciência, tudo em nome do Ensino», como bem prefaciou a jornalista Maria Leonor Nunes. A par da entrevista, foi também com prazer que li o testemunho eloquente de alguns amigos meus, como é o caso de Rui Namorado Rosa, João Caraça e Artur Marques da Costa. Também o José Niza, que conheci em Santarém em meados dos anos cinquenta (quando éramos alunos do ensino secundário, ele no Liceu Sá da Bandeira e eu no Externato Braamcamp Freire) se associou à homenagem, mas na qualidade de compositor que musicou vários poemas do Poeta, António Gedeão, que Rómulo de Carvalho também é. Escreveu José Niza, em imagem feliz: «Quem conheça o seu belo poemaLágrima de Pretaperceberá como se pode criar poesia num laboratório e fazer a fusão das palavras com os reagentes».

Pessoalmente, no que se refere à obra poética de António Gedeão, vem da década de sessenta a descoberta do «Poema para Galileu», pela voz do incomparável Mário Viegas, e a fruição das suas «Poesias Completas». E, impressionado pela beleza ritmada das suas palavras, não deixei passar ao lado a oportunidade de enriquecer o livro com o autógrafo do Poeta, o que consegui através do seu filho, Frederico Carvalho, de quem sou colega há 35 anos, desde que fui para o laboratório da ex-Junta de Energia Nuclear, em Sacavém.

Ao ler a entrevista de Rómulo de Carvalho, lembrei-me das muitas horas que passei no jardim das Portas do Sol às voltas com o seu «Compêndio de Química para o 3.º ciclo», aquando da preparação para o exame do 7.º ano de então. Ainda hoje, quarenta anos depois, tenho bem viva a impressão da enorme clareza do seu livro. Quase poderia dizer, sem exagerar grandemente, que o que sei dos fundamentos da química orgânica, por exemplo, vem desse tempo. Mas Rómulo de Carvalho, além de Professor que despertou muitas vocações, é também um grande divulgador de Ciência. A sua «Física para o Povo», por exemplo, ocupa um lugar destacado nas minhas estantes. Espero poder oferecê-la, um dia, ao meu neto.

Deixando de lado as memórias (que recordar também é viver), são dois os propósitos que me levam a escrever estas linhas. O primeiro, consiste em associarmo-nos, eu próprio e O Mirante, à homenagem nacional a Rómulo de Carvalho, em boa hora promovida pelo Ministério da Ciência e da Tecnologia por ocasião do seu nonagésimo aniversário. O segundo, resulta do interesse de levar até aos leitores do jornal (aos professores, em especial) as passagens da entrevista em que Rómulo de Carvalho se refere ao Ensino. Assim, passo a transcrever livremente o que julgo ser o essencial do seu pensamento sobre este tópico.

«(...) o ensino, que agora é posto como estando numa situação caótica, sempre esteve assim. Sempre foi muito mau, em todo o tempo. Agora, põe-se mais em relevo essa situação, dada a facilidade que os estudantes têm em manifestar o seu descontentamento.

A que se deve essa má qualidade do ensino?
Os alunos, como jovens que são, naturalmente não lhes agrada estarem presos numa aula. O professor tem de ter qualidades muito humanas e saber expressar-se, manifestar as suas ideias. Os alunos agradam-se disso. Tal como deliram com as experiências. Mas muitos professores não escolhem a profissão por vocação. E não se sentem à vontade, porque isto de aturar meninos, enfim... Claro que não estando os alunos nem os professores vocacionados para as suas funções, daí resulta uma inquietação, porque não se ajustam uns aos outros. E as coisas não podem correr bem. Sempre vi professores saírem das aulas e respirarem de alívio, ao chegarem à sala dos professores, por se terem livrado daquela corja.

Isso nunca lhe acontecia?
Não. Não só as aulas como os intervalos eram todos gastos com eles. E, pelo que parece, eles gostaram. Até mesmo aqueles que só me puderam conhecer pelo que escrevi, me agradecem o que fiz por eles. Tenho razões para morrer tranquilo. Fartei-me de trabalhar, sabe, fartei-me de trabalhar. E enquanto os médicos ou os advogados são considerados, citados na imprensa, os professores não. Não são colocados no lugar que lhes é devido.

Qual a linha orientadora da sua acção como professor?
Naturalmente, interessar os alunos pelas coisas da vida. E a Ciência presta-se para esse efeito. De modo que lhe recorria, frequentemente, para lhes abrir os olhos, fazê-los entender as coisas que convém serem feitas. Mas isso não é coisa que os professores aprendam nas escolas, quando estão a preparar-se para a profissão. É uma coisa natural, mas que dava resultados. Com isto não quero vangloriar-me...

Referiu-se ao entusiasmo que suscitavam as experiências laboratoriais. Essa sua prática não era corrente na época?
Não seria o único, mas raros seriam os que o faziam. Falar apenas certamente faria adormecer os alunos. Convinha ilustrar aquilo que se dizia. E as experiências são muito atraentes. Além daquilo que se quer provar, há sempre pormenores, coisas originais que os alunos vão descobrindo. Acho que o recurso à experiência é fundamental para o ensino. Pelo menos na Física e na Química. Se eu apenas falasse de teoria, os alunos podiam seguir com algum interesse, mas com certeza que as pálpebras acabariam por começar a pesar... Eu mesmo imaginei muito material para as minhas experiências. Quando estava no Pedro Nunes, pedi ao reitor que pusesse uma mesa de carpinteiro no laboratório de Física. Construía muitos objectos necessários que não havia no liceu. E imaginava outros

Por estas palavras (e pela sua Obra, claro), se percebe por que razão Rómulo de Carvalho é, e continuará a ser, um Professor de referência. Permita-se-me que sublinhe o que se segue, como mensagem a ponderar. Diz Rómulo de Carvalho que a aptidão para o ensino «não é coisa que os professores aprendam nas escolas, quando estão a preparar-se para a profissão, é uma coisa natural», mas também diz (desabafa?) «fartei-me de trabalhar, sabe, fartei-me de trabalhar.» Por analogia com o que é habitual afirmarem poetas, músicos, pintores e outros artistas do fruto do seu labor, tenho para mim que o que Rómulo de Carvalho nos quer dizer é isto: Na base do êxito de um professor, está a vocação, mas é imprescindível muita transpiração!

Artigo publicado no jornal O Mirante em 27 de Novembro de 1996.

NOTA - Na sequência da publicação deste artigo, recebi a seguinte mensagem do Doutor Rómulo de Carvalho (cujo aniversário do nascimento se celebra hoje):

Consultar http://www.romulodecarvalho.net/

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Parabéns Bruno!

O meu neto Bruno, filho do Paulo Miguel e da Filomena, faz hoje 19 anos. Nasceu e vive na cidade da Guarda, pelo que só nos vemos de vez em quando. Mesmo assim, tivemos oportunidade de observar flores, insectos e outras curiosidades nos passeios que dávamos, de brincar aos "gabinetes secretos" com velhos telefones instalados numa sala onde só ele e eu podíamos entrar, de fazer experiências de Física (ele ainda hoje se lembra do balão vermelho que se encheu por si, magicamente, no interior de uma garrafa que fora aquecida antes), e de montar engenhocas diversas num “laboratório” à entrada do qual ele colocava o aviso do not enter. Enfim, divertimo-nos.



Vai longe o tempo em que o Bruno, sentado ao meu colo, brincava pela primeira vez com o teclado de um computador. Mais tarde, entretinha-se a desmontar e a montar de novo o miolo de um velho PC. Hoje, frequenta o 2.º ano do curso de Tecnologias e Sistemas de Informação na Universidade da Beira Interior. Agora, quando tenho problemas informáticos, é ele o meu conselheiro! Cresceu... É bom ter-te entre nós...


domingo, 21 de novembro de 2010

Chama-se Ana

Sentou-se ao meu lado num banco desconfortável de uma das salas de espera do Hospital de Santa Maria. Era uma moça esguia, de tez escura, onde só os olhos negros e muito expressivos emprestavam ao conjunto um certo encanto.

A conversa surgiu: falou-me na dura experiência de dois meses de internamento, vividos ali, numa enfermaria sem condições, após uma melindrosa operação. Mas acrescentava, pressurosa, que quanto a cuidados médicos, tudo correra muito bem. Hoje viera para uns exames. Estava liberta. Finalmente!

Natural de Angola, casada e com um filho, o Miguel. Do marido, só más recordações. Largara-se dele há tempo e recolhera-se no afecto de uns tios que muito lhe queriam. Deambulara por França, trabalhando como empregada de um casal. Adoecera entretanto e, com o diagnóstico dos médicos franceses, regressara a Portugal para ser hospitalizada.

Voltou a falar do homem com o qual viveu seis penosos anos, tentando o impossível para manter a chama. Mas tudo fora inútil. Se soubesse até onde chegou o meu desespero! Pensei suicidar-me... Continua casada e espera ganhar forças para iniciar o processo de divórcio. É que está sem emprego e sem dinheiro. Os tios sustentam-na, e ao menino, enquanto o marido vive bem e alheado de todos os problemas.

Decorrera uma hora. Eu aguardava notícias do meu doente. Alguém veio chamá-la. Levantou-se e despediu-se com gentileza. Vi-a desaparecer através da larga porta de vidro, que dá acesso ao elevador.

Chama-se Ana e como adorno tem aqueles olhos grandes, muito escuros.


Crónica de Maria da Piedade Pinheiro Martinho publicada no jornal O Mirante em Setembro de 1989

Ilustração: Mulher de Angola - Quadro de Toia Neuparth

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Sim, Senhor Doutor! Sim, Senhor Engenheiro!

Há dias tive a oportunidade de ver um certificado de passagem de ano lectivo de uma aluna que frequenta uma Universidade belga, concretamente a Universidade Livre de Bruxelas (ULB). Refira-se desde já que, contrariamente ao que se passa na Universidade portuguesa, a aluna não tinha tido necessidade de requerer o certificado, e os respectivos serviços administrativos não haviam levado tempos infindos a passá-lo. De facto, quando acaba o ano lectivo, e com as classificações lançadas em computador, os professores da ULB reúnem-se em sessão pública e, logo ali, distribuem o certificado pelos alunos que concluíram com êxito os seus exames.

Na posse desse documento, os alunos podem então inscrever-se no ano lectivo seguinte, candidatar-se a um quarto numa residência universitária, solicitar uma bolsa de estudo nos serviços sociais da Universidade, etc. Como se percebe, o sistema está concebido para funcionar com operacionalidade e sem burocracias exageradas, e funciona mesmo.

Vários aspectos impressionam nesse certificado, desde a sua simplicidade formal até ao volume de informação nele contido (que inclui a carga horária anual de cada disciplina e o nome dos respectivos professores), passando pela já referida eficácia com que o documento foi produzido, logo no final do ano lectivo, por recurso a uma tecnologia moderna de processamentos dos dados escolares.

No tocante à simplicidade formal, um aspecto saliente, a reter aqui, tem a ver com a forma como o nome dos professores é escrito no certificado: Mr. Salmon, Mr. Louis, Mr. David, etc. Ora, Mr. é a abreviatura de Monsieur, que quer dizer Senhor, cuja abreviatura é Sr.. Por outras palavras, professores conhecidos internacionalmente, pertencentes a uma Universidade prestigiada, são mencionados muito simplesmente como Sr. Salmon, Sr. Louis, Sr. David, ... Aliás, esta é a regra geral de tratamento das pessoas entre si na Europa, independentemente dos seus graus universitários: o Senhor X, o Senhor Y, ... É simples e prático, e ninguém se sente ofendido ou menos importante.

E que se passa em Portugal? No nosso País, terra de muitos convencimentos e equívocos, onde o reconhecimento de valores nem sempre obedece a critérios de rigor, há muitos e variados tipos de tratamento: Senhor Doutor, Senhor Engenheiro, Senhor Professor... sem falar nas variações utilizadas na forma escrita: Senhor Professor Doutor, Senhor Doutor Engenheiro, Senhor Professor Doutor Engenheiro...

Poderia pensar-se que, com o evoluir do nosso sistema político para uma democracia de tipo europeu ocidental, pudesse haver alguma iniciativa consistente para tentar modificar a situação no tocante à forma de tratamento entre os portugueses, retirando-lhe o convencionalismo reinante e a carga de subserviência que lhe pode estar (e está, muitas vezes) associada. Esta democratização do relacionamento entre os cidadãos poderia (deveria) ser encetada calmamente (que o hábito vem de longe e está enraizado) e sem demagogias, como um projecto a prazo, sem prejuízo do reconhecimento de que as pessoas são diferentes entre si, como distintas são as funções que desempenham na sociedade. No fundo, o respeito saudável por alguém é uma atitude natural, decorre daquilo que a pessoa realmente é e não dos títulos académicos, ou outros, que possa ostentar.

Poderia pensar-se que sim (com o evoluir do sistema político, dizia), mas não, nunca foram dados passos nesse sentido. Sê-lo-ão algum dia? É que mesmo pessoas esclarecidas e tidas como progressistas continuam agarradas a velhos hábitos e “privilégios”, que cavam a diferença e acentuam as distâncias, e defendem-nos ciosamente, forçando a hierarquização dos portugueses em cidadãos de primeira e cidadãos de segunda (onde se incluem cerca de dois milhões de analfabetos!), como se não fosse já suficiente a diferença real existente na prática.

É o caso do professor universitário que humilha um empregado da Faculdade apenas porque o tratou por “Senhor Doutor”: Senhor Doutor? Senhor Professor, quer dizer! Olhe que se for preciso puxar pelos galões, posso muito bem fazê-lo! É o caso do médico que invectiva a funcionária dos correios apenas por lhe ter enviado um aviso dos CTT sem o Dr. atrás do nome. E muitos outros exemplos poderiam ser mencionados.

Nesta matéria, como em muitas outras, Portugal está longe da Europa. E se é verdade que para conseguir certas evoluções são necessários fundos avultados, neste caso a mudança depende apenas de nós, assim haja coragem para encetar um caminho de igualização da dignidade. Agora que foi criado pelo Conselho de Ministros uma estrutura designada “Secretariado Europa 1992”, que «visa, no essencial, mobilizar o País para o desafio decisivo que é a construção da Europa sem fronteiras até 1992», talvez fosse uma boa oportunidade para eliminar certas fronteiras entre os portugueses!


Crónica publicada no jornal O Mirante em Setembro de 1988, e de novo em Junho de 2007 com a seguinte anotação da Direcção do jornal: Quase 20 anos depois resolvemos republicá-la, com a autorização do autor, para percebermos melhor o país em que ainda vivemos.

Fotografia da ULB encontrada em http://commons.wikimedia.org/wiki/User:Roby

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Quando eu nasci


Quando eu nasci,

ficou tudo como estava.


Nem homens cortaram veias,

nem o Sol escureceu,

nem houve Estrelas a mais...

Somente,

esquecida das dores,

a minha Mãe sorriu e agradeceu.


Quando eu nasci,

não houve nada de novo

senão eu.


As nuvens não se espantaram,

não enlouqueceu ninguém...


P'ra que o dia fosse enorme,

bastava

toda a ternura que olhava

nos olhos de minha Mãe...



Sebastião da Gama

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Os avós Manuel e Márcia

Esta fotografia do meu avô Manuel Cardoso foi tirada em 1912 no Brasil para onde ele emigrara. A minha avó Márcia ficara em Famalicão (Anadia) com os dois filhos mais velhos: Maria Emília (minha Mãe) e o meu tio Francisco. Viriam a nascer ainda mais cinco filhos.

Após o regresso do Brasil, a família Cardoso acabou por vir para a Chamusca, julgo que por iniciativa de minha Mãe (que para aqui tinha vindo trabalhar e onde havia casado em 1936). É uma história de que não conheço o essencial.

Não me lembro muito bem do meu avô Manuel porque, quando ele faleceu, eu teria uns dez anos e não tínhamos convivido muito. Ficou-me uma ideia da tristeza do seu olhar, da finura do seu trato e da consideração que tinham por ele (informaram-me mais tarde), porque era uma pessoa educada e cumpridora. Escrevia facilmente e tinha uma caligrafia bonita, aliás como a minha Mãe.

Recordo-me que o meu avô Manuel fumava cigarros enrolados, que acendia com um “isqueiro” em que uma torcida enfiada no interior de um pedaço de cana funcionava como mecha. A lembrança mantém-se porque me fascinava a perícia com que ele acendia a mecha fazendo saltar uma faísca de uma pedra esquinada por fricção das arestas com uma pequena lima de ferro.

Em suma, o que me lembro dos meus avós maternos é apenas um pouco mais do que nada. E tenho pena de ter sido curta para mim a sua “eternidade”... Por isso, aqui fica uma pequena achega para alongá-la junto dos meus netos.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

O avô Joaquim

O avô era um bonito homem. Alto, esbelto, feições correctas, um bigode ruivo muito cuidado e aquele ar altivo parecendo dominar tudo e todos. Dizia-se que fora grande conquistador de corações nos tempos da juventude. Ainda na época em que o conheci da fama não se livrava, sob a complacência da avó, habituada a sofrer em silêncio as agruras de todas as infidelidades.

Fiquei com ele, na casa onde nasci, nos primeiros anos. Do respeito que lhe tínhamos, mistura de medo e admiração, ainda hoje retenho a impressão que nos causava. Tempo de silêncios quando ele se anunciava, no gesto habitual de abrir a porta ou no subir vagaroso da velha escada. O certo é que nunca o avô se zangou connosco. Nos jantares das quintas-feiras, reunida a família, os pequenos tinham já nessa época o privilégio de contestar pequenas coisas. Nesses momentos, por entre os esgares aflitos dos pais e dos tios, o avô esboçava sempre um sorriso discreto de condescendência e ternura, camufladas embora pelo ar austero que a ele mesmo se impunha.

Guardo em mim, como um marco indelével, aquele seu gesto amável quando terminei a quarta classe. O avô comprou uma pasta de cabedal (o meu sonho de sempre) que colocou num dos degraus a meio da escada que eu subiria mais tarde. Foi a surpresa mais sensacional do tempo que passei com ele. Deixei-o pouco depois, para ir viver com os meus pais.

Dele guardei recordações de infância que fazem parte do meu imaginário. Até hoje.

Texto de Maria da Piedade Pinheiro Martinho publicado no jornal O Mirante (Dezembro.1992)


A avó Rosa

A imagem da avó, se bem que esbatida, continua presente. Revejo-a no modo terno como me acarinhava e lembro-a no seu jeito pesado de se deslocar pela casa, roupas escuras que sempre lhe conheci e os hábitos familiares e rotineiros que cumpria com rigor e sem queixumes. Está junto ao fogão de lenha, desfaz pacientemente o feijão que servirá para a sopa. Num passador, ela deita o feijão cozido e, com pancadas ritmadas, tenta desfazê-lo com uma colher de pau, sem pressas. Olho-a extasiada! Nem sequer posso ajudá-la, que a colher é muito grande e é preciso bater com força. Lembro-a sentada a engomar, o ferro pesado, a carvão (sentada, porque o corpo doente lho não permitia de outro modo). E nas épocas festivas, confeccionando as broas e os coscorões – tudo colocado na mesa comprida e escura da sala.

Às quintas-feiras, pontualmente , chegavam para o jantar os filhos já casados, as noras, os genros e os pequenos. Quantas brincadeiras à volta dos pontapés que dávamos uns aos outros, por debaixo da toalha. E os nossos pais, que nos lançavam olhares reprovadores! O avô mantinha, lá no topo, uma presença austera, mas era quinta-feira... Nós sabíamos bem que isso nos era permitido e mesmo recusar a sopa, se por acaso nos agradava menos. O sorriso do avô, só para nós e às quintas-feiras. Grande festa!

Vem-me à memória os anos 43 ou 44, com o racionamento de alguns géneros alimentícios. Se bem que nos não tenha afectado, porque o avô fiscalizava o mercado municipal e vinham todos os dias as alcofas repletas de tudo muito fresco, apenas eu o sentia no rebuçado ou na colher de mel que a avó colocava no fundo da minha caneca para adoçar o leite com café. É que o leite continuava bem amargo e eu reclamava sempre. Nos tempos livres a avó tricotava, em fio de algodão, lindas meias rendadas para os netos. Usava cinco agulhas muito finas de metal, cujo tilintar e arte no manejo me causava sempre grande surpresa. Nos momentos menos bons ou nos dias de temporal, ela recolhia ao quarto e rezava diante do grande oratório, suspenso numa das paredes e no qual se misturavam imagens de santos de aspecto mais ou menos triste, flores secas e pavios que, alimentados a azeite, emprestavam ao ambiente um cheiro não muito agradável. No conjunto, e para mim, era um local misterioso e sinistro. Detestei sempre o velho oratório!

A avó acompanhou entusiasmada a minha entrada na escola primária. Esmerava-se nas minhas batas, sempre lindas, e destinara em casa, num cantinho, uma secretária para os meus afazeres, que os tínhamos nessa altura e em quantidade, todos os dias.

Cresci com ela até aos nove anos. De repente, a avó ficou muito doente. Ninguém me preveniu, mas eu sabia que ela ia deixar-nos. Sentava-me junto dela o tempo todo. Quiseram afastar-me. Recusei. Levaram-na numa tarde de sol. Seguiram-se noites de pesadelos e mágoa. Com muita dificuldade, retomei naquela casa o meu lugar, agora sem ela.

Texto de Maria da Piedade Pinheiro Martinho (1992)

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Libertação pelo conhecimento

Li algures uma frase com o seguinte significado: o conhecimento é o que fica depois de se esquecer tudo. Numa primeira leitura, poderia ser-se levado a pensar que, esquecendo tudo, nenhum conhe­cimento ficaria... Visivelmente, porém, não é esta a conclusão a tirar. Na verdade, da vivência pessoal de cada um, não se esquece aquilo a que alguma vez se aderiu completamente, ou seja, aquilo que se interiorizou em nós a ponto de passar a fazer parte integrante do nosso conhecimento.

Admitamos que se pergunta a alguém: Ainda sabe andar de bicicleta? ou O açúcar tem um sabor ácido, amargo ou doce? ou ainda Normalmente, em que época do ano faz mais frio em Portugal? Ninguém duvida que as respostas a tais perguntas serão dadas correctamente e sem hesitação. Supo­nhamos agora que se interroga um jovem estudante do ensino secundário, por exemplo, sobre questões relacionadas com matérias já versadas nas aulas. Nesta situação, como é óbvio, não se pode afirmar antecipadamente se as respostas serão correctas ou erradas. Isso dependerá da conjugação de vários factores intervenientes no processo de aprendizagem das matérias, de que se salientam aqui a capaci­dade dos professores e os meios laboratoriais e audiovisuais postos ao serviço do ensino.

Vem isto a propósito da minha passagem pelo Colégio Padre Fernando Eduardo Pereira – Outubro de 1949 a Julho de 1951 – e do conhecimento que me ficou desses dois anos lectivos, depois de esque­cer tudo... De todas as disciplinas poderia recordar episódios ou aspectos que influenciaram positiva­mente a minha actividade escolar subsequente. Citarei apenas um caso. Talvez levemente desfocado, porque esbatido pelo tempo. Mas autêntico.

Aulas de Ciências Naturais em manhã de sol. Foi até necessário fechar a janela para realizar a de­monstração, que a claridade era excessiva na sala. Da vitrina de um móvel, onde era guardado o pouco material didáctico que havia no colégio, saiu um aparelho que de há muito despertava a nossa curiosi­dade. Preparado o equipamento em cima da secretária da professora, a D. Carlota Serra, todos nos co­locámos à sua volta, atentos. A Terra era um pequeno globo, a Lua era uma esfera de cortiça espetada na extremidade de um arame encurvado, o Sol era uma vela reflectindo-se num espelho tosco. Accio­nadas por meio de uma manivela, as engrenagens, um tanto enferrujadas, entraram em funcionamento. A Terra começou a rodar em torno do seu eixo, a Lua iniciou o movimento de translação à volta da Terra, enquanto o Sol, bruxuleante, desempenhava a contento a missão. Eu e os meus colegas agitá­vamo-nos, interessados. Vieram as perguntas e as explicações, repetiu-se a demonstração. Como diria Sebastião da Gama: aconteceu uma aula! E, em meia hora, fiquei a compreender completa e definiti­va­mente como se sucedem os dias e as noites, como se explicam as fases da Lua, como se dão os ecli­pses da Lua e do Sol. Dera o primeiro passo no conhecimento dos mistérios da “máquina universal”.

Foi desde então, creio, que passei a olhar a Natureza com tranquilidade.

Artigo publicado na revista Chamusca Ilustrada em Maio de 1977