sexta-feira, 19 de agosto de 2016

“Neutron self-shielding”… o que é isso?

Um Amigo fez-me uma pergunta há algum tempo: Afinal, que significa “neutron self-shielding”? Como por vezes falas disso e da “curva universal” descoberta no Laboratório de Sacavém, eu gostava de saber mais sobre o assunto. Mas tens de dar a explicação “devagarinho e a cores"... que a minha formação não é em Ciência.
Fiquei de pensar no assunto. Assim fiz, e hoje vou satisfazer a sua curiosidade, começando mesmo pelo princípio. Reconheço que é uma explicação extensa, mas tenho uma boa desculpa: como diria alguém, não tive tempo para ser breve...

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01. Todos os objectos dotados de massa – sejam sólidos como uma rocha, líquidos como a água ou gasosos como o ar – são constituídos por átomos. Os átomos, por sua vez, são constituídos por um núcleo central e electrões periféricos. O núcleo é formado por dois tipos de partículas: protões (carga eléctrica positiva) e neutrões (carga eléctrica nula); a protões e neutrões dá-se o nome de nucleões, por fazerem parte do núcleo. O núcleo atómico é electricamente positivo, devido à presença dos protões. 
Nota - Sabe-se que cargas eléctricas do mesmo sinal se repelem e cargas de sinal contrário se atraem. A coesão do núcleo deve-se à existência de forças nucleares intensas entre os nucleões, mais intensas do que as forças de repulsão entre protões.

02. Como o neutrão é electricamente neutro, “entra” facilmente no núcleo atómico (não é repelido) e pode alterar a sua constituição. A este tipo de alteração dá-se o nome de reacção nuclear (aliás, a palavra nuclear refere-se, obviamente, a núcleo). P. ex., um neutrão que “entre” num núcleo de alumínio-27 (13 protões + 14 neutrões) transforma-o em alumínio-28 (13 protões + 15 neutrões), que é uma espécie atómica radioactiva (ou nuclido radioactivo). Simbolicamente:
n + Al-27 ==> Al-28.

03. Uma reacção nuclear importante induzida por neutrões é a cisão nuclear. Um neutrão que “entre”, p. ex., num núcleo de urânio-235 (92 protões + 143 neutrões) pode levar a que o núcleo de urânio-236 formado (altamente instável) se “parta” (quase) ao meio. Uma das transformações possíveis pode conduzir à formação de 
(a) um núcleo de bário-141 (56 protões + 85 neutrões), (b) um núcleo de krípton-92 (36 protões + 56 neutrões) e (c) 3 neutrões. Simbolicamente:
n + U-235 ==> Ba-141 + Kr-92 + 3 n


04. Repare-se que a reacção de cisão nuclear é iniciada por um neutrão e tem a particularidade de dar lugar à produção de neutrões. Este facto especial – e raro, porque não é comum a mesma partícula ser agente da reacção e, simultaneamente, produto da reacção – levou de imediato a imaginar a possibilidade de se estabelecer uma reacção de cisão nuclear em cadeia


Este desiderato foi alcançado na prática em 1942, ano em que funcionou pela primeira vez um reactor nuclear (Enrico Fermi, EUA, Chicago Pile). Tinha sido construída a primeira máquina de produzir neutrões. 20 anos depois (1962) começou a funcionar o Reactor Português de Investigação no Laboratório Nuclear de Sacavém.


05. Um reactor nuclear é, pois, uma máquina onde ocorre, de forma controlada, uma reacção de cisão nuclear em cadeia auto-sustentada. Os produtos desta reacção em cadeia são: neutrões e energia, que são aproveitados com finalidades específicas. A energia é aproveitada em centrais nucleares para produizr electricidade, e os neutrões são utilizados com finalidades diversas em reactores nucleares como o Reactor Português de Investigação (o núcleo do RPI, zona "nobre" do reactor onde são produzidos neutrões, funciona debaixo de água a cerca de 9 metros de profundidade).


06. A irradiação de amostras no reactor pode ter diversas finalidades: (a) metrologia de radiações, em particular medição do fluxo de neutrões nas posições de irradiação (o conhecimento do fluxo de neutrões é importante para os investigadores poderem planear as experiências que pretendem realizar), (b) determinação de diversos parâmetros nucleares (secções eficazes, integrais de ressonância, etc.); (c) análise por activação com neutrões de vários tipos de amostras; (d) produção de isótopos radioactivos para aplicações médicas, (e) produção de fontes radioactivas para aplicações industriais, etc.

07. O aproveitamento de neutrões em reactores de investigação envolve geralmente a colocação de pequenas amostras na zona de experimentação, onde são irradiadas (vulgo “bombardeadas”) com neutrões “que andam por ali”, em movimento aleatório, ziguezagueante, devido a colisões de dispersão com núcleos de átomos presentes no meio – o hidrogénio da água, no caso do RPI. 
Em resultado da absorção de neutrões, as amostras tornam-se radioactivas, e é a partir da medição da radioactividade induzida nas amostras que se podem tirar conclusões sobre a investigação em causa.
Importa então reter este aspecto: as amostras são colocadas na vizinhança do núcleo do reactor, pelo que a amostra fica imersa num campo de neutrões. É aqui que surge o efeito de neutron self-shielding (autoprotecção neutrónica, em português).


08. Consideremos a metrologia de neutrões num reactor nuclear. Imaginemos que se pretende determinar o fluxo de neutrões num ponto onde se vai colocar uma amostra a irradiar
[Nota - O fluxo de neutrões é um parâmetro importante em Física de Reactores Nucleares. Define-se como sendo o número de neutrões que atravessam por segundo uma esfera com 1 cm2 de secção. Dimensões: cm–2s–1]. 
Em concreto, neste exemplo, a amostra pode ser uma pequena folha de ouro (área da ordem de 1 cm2 ou menos) com uma espessura da ordem de algumas centésimas de milímetro. Apesar das dimensões diminutas da amostra, o campo de neutrões pode sofrer uma perturbação significativa, que se reflecte obviamente na determinação do fluxo de neutrões.

09. Em resultado da irradiação com neutrões, durante um certo intervalo de tempo, a amostra de ouro fica radioactiva, como já dissemos. É claro que é imprescindível que a medição da radioactividade induzida na amostra nos conduza ao valor correcto do fluxo de neutrões reinante no ponto de interesse antes de lá ter sido colocada a amostra (diz-se que se trata do fluxo de neutrões não-perturbado). Ou seja, temos de estar seguros de que a amostra ou não perturba o campo de neutrões (por a amostra ser muitíssimo fina ou muito diluída numa liga metálica) ou então temos de estar seguros de que somos capazes de corrigir adequadamente a perturbação originada pela amostra.


No esquema figurado acima (em que o tamanho da amostra está obviamente exagerado), o perfil do fluxo de neutrões (ao longo da espessura da folha) põe em evidência o efeito de autoprotecção neutrónica: o fluxo é menor no interior da folha porque são as camadas mais externas que absorvem preferencialmente os neutrões, em detrimento dos neutrões que atingem as camadas mais internas (as camadas mais externas como que “protegem” as camadas mais internas, daí a designação de autoprotecção).

10. A perturbação do campo de neutrões depende de vários factores: (a) depende da natureza da amostra (ouro, cobalto, índio, manganés, etc.); (b) depende da geometria da amostra (folha, fio, cilindro, esfera); (c) depende das dimensões típicas da amostra (espessura no caso de folhas, raio no caso de fios e de esferas, raio e altura no caso de cilindros). 
Nota: Na figura abaixo estão representadas quatro situações correspondentes a perturbações do campo de neutrões (num dado dispositivo de irradiação) originadas pela variação de factores como os que se indicam acima. Se não fosse possível corrigir adequadamente a perturbação do campo de neutrões, a cada um dos quatro perfis do fluxo corresponderia um valor diferente do fluxo de neutrões... e não o valor do fluxo de neutrões não-perturbado na posição de irradiação considerada, que é o valor característico dessa posição. 


11. A perturbação do campo neutrónico depende ainda da energia dos neutrões que se considere, nomeadamente: (A) neutrões de baixa energia (neutrões térmicos, por estarem em equilíbrio térmico com o meio onde se difundem, a água no caso do RPI) e (B) neutrões de energia intermédia (designados por neutrões epitérmicos ou neutrões de ressonância, por corresponderem à gama de valores da energia em que a probabilidade de ocorrência de reacções nucleares (secção eficaz, em linguagem da Física de Neutrões) apresenta picos de ressonância (valores notoriamente mais elevados da secção eficaz para certos valores da energia dos neutrões).


12. Para corrigir a perturbação do campo de neutrões, e assim interpretar adequadamente os resultados da irradiação da amostra, são então necessários dois parâmetros: 
(a) factor de autoprotecção referente a neutrões térmicos (Gth) e 
(b) factor de autoprotecção referente a neutrões de ressonância (Gres). 
A determinação destes factores não é uma tarefa fácil, em especial no que se refere ao factor Gres. Ao longo de meio século, este parâmetro foi sendo obtido (por via experimental ou através do cálculo) sempre caso a caso, consoante a natureza, a geometria e as dimensões da amostra, porque não existia nenhuma metodologia geral que permitisse determiná-lo de outra maneira.

13. Foi neste contexto que um grupo de três investigadores (Isabel Ferro Gonçalves, José Salgado e eu próprio) do Laboratório Nuclear de Sacavém    hoje Campus Tecnológico e Nuclear, integrado no Universidade de Lisboa/IST – encetou em 2000 um trabalho de simulação computacional visando o cálculo do factor Gres, recorrendo ao método de Monte Carlo. A ideia inicial consistia basicamente em verificar se era possível, por esta via, dar resposta a solicitações de utilizadores do RPI no sentido de avaliar a viabilidade de produção de certos radionuclidos no reactor.

14. Na fase de planeamento do trabalho, foram antecipadas algumas questões que era necessá­rio esclarecer antes de prosseguir: (a) Como caracterizar a fonte de neutrões e a amostra para simular a sua irradiação num campo isotrópico de neutrões epitérmicos? (b) Que relação deve existir entre o comprimento e o raio do cilindro por forma a simular um fio infinito? (c) Que relação deve existir entre o raio de um alvo circular e a sua espessura por forma a simular uma folha infinita? (d) Dado que Gres é calculado através da razão entre a taxa de reacção por átomo na amos­tra real e a taxa de reacção por átomo numa amostra de referência ― amostra similar à real mas não-per­turbadora do cam­po de neutrões (Gres=1) ―, que diluição do nuclido na amostra de referência deve ser adopta­da no cálculo? Para todas estas perguntas foram sendo encontradas respostas.

15. O objectivo inicial do trabalho, como se disse acima, consistia simplesmente no estabeleci­mento de uma metodo­logia de cálculo de Gres. Com base na técnica de Monte Carlo, procedeu-se então ao cálcu­lo de Gres para folhas e fios de ouro (Au-197), cobalto (Co-59) e manganésio (Mn-55). Estas escolhas foram ditadas por duas ordens de razões: (a) o ouro, o cobalto e o manganésio são elementos constituídos por um só isótopo natural e (b) existiam na literatura valores experi­mentais susceptíveis de validar os resultados do cálculo. Os valores obtidos foram prometedores, tendo sido aceites para publicação numa revista da especialidade: Monte Carlo calculation of resonance self-shielding factors for epithermal neutron spectra. Radiation Physics and Chemistry 61 (2001) 461.

16. A partir daqui, o estudo foi sendo ampliado e aprofundado. Resumindo: 
(1) Primeiro, procedeu-se ao cálculo sistemático de Gres (neutrões epitérmicos ou neutrões de ressonância) para folhas, fios, esferas e cilindros de vários materiais e diversas dimensões para cada geometria. 
(2) Numa segunda fase, a metodologia de cálculo foi estendida à determinação de Gth (neutrões térmicos) para novos materiais, as mesmas geometrias e várias dimensões para cada geometria.  
(3) Finalmente, encontrámos a "chave" decisiva do trabalho: descobrimos que havia duas variáveis adimensionais z (cf. AQUI e AQUI) que faziam convergir em curvas únicas (curvas universais) as dezenas de resultados obtidos para Gres e para Gth!



Os artigos produzidos sobre esta matéria foram publicados entre 2001 e 2004 e estão disponíveis AQUI. Este site tem sido consultado por centenas de leitores de dezenas de países. Nos últimos 3 anos (2013 a 2015) a estatística do site revela que houve 2263 views (30% dos E.U.América) realizadas por 1312 visitors de cerca de 50 países por ano. 


17. Investigadores canadianos explicitaram como segue a sua apreciação global em relação ao nosso trabalho [C. Chilian, R. Chambon, G. Kennedy: Neutron self-shielding with k0NAA irradiations. Nuclear Instruments and Methods in Physics Research A 622 (2) (2010) 429-432]:
(…) Historically, the calculation of Gth and Gres was extremely difficult, and it was recommen­ded to dilute the samples to avoid self-shielding. Fortunately, [Portuguese] reactor physicists recently showed that the amount of epithermal as well as thermal self-shielding could be expressed by the same analytical function, a sigmoid, for all nuclides. (…).

18. Esta é a história de um trabalho que tinha inicialmente um objectivo modesto, de alcance limitado, mas que, mercê de circunstâncias favoráveis, se transformou num caso de sucesso e de prestígio para o Laboratório Nuclear de Sacavém. De facto, os nossos resultados têm tido uma ampla aceitação a nível internacional, como pode ser constatado AQUI (onde figuram algumas teses de doutoramento e de mestrado, em parte defendidas nos Estados Unidos da América).

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